A pesquisa “Panorama da Primeira Infância: o que o Brasil sabe, vive e pensa sobre os primeiros anos de vida”, divulgada pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal em parceria com o Instituto Datafolha, evidencia a importância de se discutir a primeira infância em nosso país. No estudo, foram realizadas 2.206 entrevistas em todo o Brasil, sendo 822 com pessoas responsáveis pelo cuidado de crianças de 0 a 6 anos.
Considero a análise desses dados um passo importante para avaliar a eficácia das políticas públicas e, principalmente, para direcionar os investimentos em uma área que é a base de todo o desenvolvimento humano de uma nação. É nesse período que se formam as estruturas do desenvolvimento cognitivo, físico e socioemocional.
Os dados evidenciam que a falta de conhecimento sobre a primeira infância ainda é um desafio. Os resultados do estudo revelam que 84% da população brasileira não consideram os anos iniciais como essenciais para o desenvolvimento; 42% não sabem o que significa o termo “primeira infância”, apenas 2% da população em geral e 4% dos cuidadores das crianças de 0 a 6 anos sabem que o termo se refere ao período que vai até os seis anos de idade. Esse desconhecimento se reflete na percepção do desenvolvimento: a maioria dos entrevistados, 41%, acredita que o maior período de desenvolvimento do ser humano é a partir dos 18 anos, e apenas 15% da população associam essa fase dos primeiros anos como o período em que há maior desenvolvimento. O
desconhecimento da importância da primeira infância representa um sério risco, pois os seis primeiros anos de vida são, cientificamente, a fase de maior e mais potente desenvolvimento, impactando toda a trajetória da criança.
A pesquisa também aborda a relação do adulto com a criança e traz aspectos interessantes sobre as práticas de cuidado. Quando questionados “o que você considera a coisa mais importante, que não pode faltar, na sua relação com a criança?”, sentimentos como “amor” e “carinho” foram muito citados tanto por mulheres quanto por homens, demonstrando que a população tem consciência da importância do vínculo para um bom desenvolvimento. Contudo, o brincar apresentou um percentual de apenas 3%, destacando a falta de compreensão sobre a importância dessa atividade, que é uma das principais para o crescimento físico, cognitivo e socioemocional.
Em relação às práticas que mais impactam o desenvolvimento, “ensinar a respeitar os mais velhos” foi a mais lembrada pelos respondentes da pesquisa, antes mesmo de ações com impacto positivo já comprovado, como: conversar com o bebê ou a criança, contar e ler histórias para a criança desde pequena e deixar a criança brincar livremente. De acordo com o estudo, em média, 67% dos responsáveis consideram importante a criança brincar livremente. A brincadeira livre é um dos maiores impulsionadores do desenvolvimento integral, com impactos que duram por toda a vida.
Adicionalmente, os dados sobre disciplina revelam uma contradição entre a crença e a prática. Embora apenas 17% dos cuidadores acreditem que a violência física seja eficaz, 29% deles admitem usar palmadas, beliscões e apertos para disciplinar. Gritar ou brigar com a criança foi uma prática mencionada por 10% dos cuidadores. Ainda de acordo com a pesquisa, essas práticas são adotadas com crianças de todas as idades, com um aumento de 10 pontos percentuais em crianças de 4 a 6 anos em relação às de 0 a 3 anos. Em relação ao impacto da violência sobre as crianças de 0 a 6 anos, em média, 24% dos responsáveis acreditam que ela gera maior respeito e ensina a criança a obedecer. Por outro lado, 43% acreditam que pode gerar mais comportamentos agressivos; desses, 47% são mulheres e 36% são homens.
Essa dissonância exige uma reflexão sobre a necessidade de informar e capacitar as famílias sobre métodos disciplinares não violentos e a necessidade de criar crianças em ambientes mais seguros. A violência impacta negativamente a infância, causando problemas de saúde mental, dificuldades de aprendizagem e comportamento agressivo, podendo gerar estresse tóxico e seus efeitos perdurarem ao longo da vida.
O uso de telas é outro ponto de alerta. No estudo, foi constatado que 78% das crianças de 0 a 3 anos ficam 2 horas por dia expostas a esses dispositivos, o que é o dobro do limite recomendado pela Sociedade Brasileira de Pediatria para a faixa etária de 2 a 5 anos. Para crianças menores de 2 anos, a exposição é totalmente desaconselhada. Os adultos reconhecem os riscos; mais da metade da população afirma que o uso de telas afeta a saúde das crianças, podendo prejudicar a visão e diminuir o tempo de atividades que envolvem movimento. Dessa maneira, entende-se que o uso excessivo é prejudicial, e mais de 40% avaliam que as crianças passam mais tempo do que deveriam em contato com dispositivos eletrônicos.
A pesquisa “Panorama da Primeira Infância”, além de apresentar um diagnóstico do que a população sabe sobre os primeiros anos de vida, também nos indica que a informação deve estar a serviço da sensibilização, que é o primeiro passo para a mudança de atitude. Ela revela que o desafio vai além da implementação de políticas e programas, exigindo uma estratégia de comunicação e educação que traduza o conhecimento científico sobre a primeira infância em uma linguagem acessível para toda a sociedade. É papel dos governos, da academia e, sobretudo, dos órgãos de controle, garantir que os recursos públicos sejam aplicados de forma estratégica para preencher essa lacuna de conhecimento. O investimento na primeira infância é o mais rentável que um país pode fazer, pois impacta diretamente a saúde, a educação e a produtividade de toda a sociedade.