O novo e pouco transparente normal: O maior desafio está em conhecer a qualidade dos gastos executados pelo poder público

Governo Digital e Transparência, Orçamento e Finanças

Desde o reconhecimento do estado de calamidade pública, decorrente do espraiamento do novo coronavírus, debate-se sobre os contornos que permeiam o paradigma inaugurado sob a denominação de “novo normal”. Sobretudo no âmbito das contratações públicas, o “novo normal” representou o consenso a respeito da insuficiência dos mecanismos jurídicos tradicionais à disposição dos gestores públicos para o enfrentamento de crises, desvelando a necessidade de promover flexibilizações no regime de aquisições e nos condicionamentos fiscais impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

O que o novo regime de normalidade instaurado a partir da crise pandêmica não substituiu, todavia, foi a imperiosa observância dos deveres constitucionais inerentes à transparência, que exige dos governos ações manifestas, pois é por trás do véu da opacidade que amadurecem e se difundem os vícios que corroem os sistemas democráticos.

Assim, se em períodos de normalidade a publicidade dos atos administrativos constitui a regra, cujas exceções hão de ser descritas minuciosamente na lei ou na Constituição, no contexto extraordinário desencadeado por uma emergência de saúde pública, que reclama dos governos ações céleres, eficazes e efetivas, é que o poder deve ser plenamente visível e inteligível. Sob quaisquer circunstâncias, com efeito, é inconcebível a existência de um governo que emprega o segredo para violar impunemente a lei, assim como para obter do Estado favores ilícitos.

Tais premissas valeram para fundamentar a suspensão liminar da eficácia do art. 6º-B, da Lei nº 13.979/20, incluído pela Medida Provisória nº 928/2020, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.351, cujo teor pretendia escamotear a aplicabilidade da Lei de Acesso à Informação em relação às medidas tomadas para o enfrentamento do cenário de calamidade pública. Assentou o relator, naquela ocasião, em seu voto, que o acesso às informações se consubstancia em verdadeira garantia instrumental ao pleno exercício do princípio democrático.

De modo semelhante, fundamentaram a promulgação de dispositivos que enrijeceram as obrigações vinculadas à publicidade dos atos e negócios públicos associados ao combate à Covid-19, de modo a evidenciar aos olhos dos controladores (institucionais e sociais) a destinação dada aos recursos estatais.

Assim, ao passo em que a Lei Complementar nº 173/2020, que instaurou o denominado Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-Cov-2 (Covid-19) afastou, durante o período de calamidade, a observância de regras fiscais restritivas concernentes à renúncia de receitas, à criação e expansão de gastos públicos de caráter continuado, e à realização e recebimento de transferências voluntárias, consignou expressamente que tais dispensas não eximem seus destinatários do cumprimento das obrigações de transparência e fiscalização, cujo atendimento será objeto de futura verificação pelos órgãos de controle externo.

A Emenda à Constituição instituidora do “orçamento de guerra”, por sua vez, conquanto excepcione, neste exercício financeiro, a obediência à regra de ouro estabelecida no inciso III do art. 167, que proíbe a realização de operações de crédito que excedam as despesas de capital, determina que as autorizações de despesas associadas às ações de combate aos efeitos do coronavírus constem de programações orçamentárias específicas (destacadas) ou contem com marcadores que as identifiquem, e sejam objeto de avaliação separada na prestação de contas do Presidente da República. Além de serem evidenciadas, até 30 dias após o encerramento de cada bimestre, no relatório resumido de execução orçamentária.

A estas, se somam as imposições normativas já existentes, constantes, de modo geral, na própria Carta da República e na Lei de Acesso à Informação e, de modo específico, entre outras, na Lei de Responsabilidade Fiscal, ao assentar a gestão fiscal responsável na ação planejada e transparente da administração, na Lei de Processo Administrativo, ao impelir o Poder Público a expor a motivação que suporta a prática de seus atos, e na Lei de Defesa do Usuário de Serviços Públicos, quando prescreve que a plena visibilidade dos serviços prestados não se exaure na disponibilização das informações a eles referentes, mas exige também a clareza, lucidez e simplicidade dos dados publicados, em ordem a viabilizar o exercício do controle social tempestivo e eficaz. De fato, nenhuma dessas normas teve a sua eficácia constrangida pela emergência do coronoravírus, de modo que nem as suas disposições são novas, e nem o seu atendimento deixou de ser normal.

Isso permite que se verifique a eleição das prioridades pelo governo, e como a alocação dos recursos à saúde tem deixado a desejar. Da previsão total de gastos adicionais da União para o enfrentamento da crise, no valor de R$ 404,14 bilhões, correspondente a 47,37% da receita corrente líquida federal, segundo previsão atualizada para 2020, apenas R$ 38,9 bilhões foram destinados ao Fundo Nacional de Saúde, para aplicação nas ações do Ministério da Saúde (Ação 21C0), e menos ainda (1/3), foi efetivamente executado.

O maior desafio, contudo, está em conhecer a qualidade dos gastos executados pelo Poder público. O passo a mais que precisa ser dado em termos de transparência é justamente o uso que se faz dos dados que são revelados, e como as evidências extraídas dos resultados publicados podem bloquear ações voluntaristas e intenções mal fundamentadas, que não produzem outra coisa senão serviços precários e obras paralisadas. Deixar de promover avaliações criteriosas sobre os resultados das políticas públicas não merece críticas menos contundentes do que aquelas direcionadas aos que ignoram o uso da ciência nestes tempos tão conturbados.

Em suma, independentemente das circunstâncias, subtrair-se do olhar público ou dissimular os negócios do Estado, jamais comporá qualquer hipótese de normalidade.

DORIS DE MIRANDA COUTINHO – Conselheira do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins, Doutoranda em Direito Constitucional na Universidade de Buenos Aires. Especialista em Política e Estratégia e em Gestão Pública com ênfase em controle externo. Membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros. Escritora e pesquisadora.

Doris de Miranda Coutinho