Vinte anos da Constituição Cidadã: o que falta para a efetividade do controle externo brasileiro?

Auditoria e Controle

Interesse Público -IP Belo Horizonte, ano 10, n. 51, set./out. 2008

Vinte anos da Constituição Cidadã: o que falta para a efetividade do controle externo brasileiro?

Autora: Doris T. Pinto Cordeiro de Miranda Coutinho

Controle externo. Tribunal de Contas. Carta Magna. Constituição Federal.

Ultimamente tenho me dedicado -além de minhas atribuições à frente da presidência do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins -a percorrer caminhos que levem à resposta que intitula este artigo, resposta esta perseguida pelo sistema de controle, pela sociedade e especialmente por nós, membros de uma instituição a quem foi destinada a operacionalização do Controle Externo, cuja titularidade é do Poder Legislativo. O efetivo exercício do Controle Externo, na forma prevista na Carta Magna, tem sido alvo da propositura de vários projetos de emendas constitucionais e de calorosos debates quanto ao alcance de suas ações, os instrumentos à disposição, a forma de composição dos Tribunais de Contas e os agentes legitimados para a sua consecução.

Não acho demais sempre lembrar as lições do eminente Ministro Carlos Ayres Britto no que concerne ao caput do art. 71 da CF quando diz que o controle externo, a cargo do Congresso Nacional, não se faz senão com o auxílio do Tribunal de Contas da União, o que não se confunde com a difundida idéia de “órgão auxiliar”, fruto da equivocada interpretação de um vínculo de subalternidade hierárquica, quando, ao contrário, o constituinte prestigiou a participação desse Tribunal, tomando-o como imprescindível ao exercício desta função do Parlamento.

Feitas estas considerações, não por acaso o Senado Federal, através da Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle, ainda no primeiro semestre deste ano, promoveu, em atendimento a Requerimento de autoria do Senhor Senador Renato Casagrande, “a realização de ciclo de debates através de audiências públicas, com temas voltados para a atual realidade do controle e possíveis formas de aperfeiçoamentos do poder vigente”. F oram cinco encontros técnicos envolvendo profissionais da imprensa, cientistas políticos, professores, além de parlamentares e de diversas autoridades de instituições que de alguma maneira desenvolvem ou atuam em atividade de fiscalização e controle, ou estão sob o alvo das mesmas, na tentativa de se proceder um diagnóstico do sistema de controle no país, para que seja possível desenhar os aprimoramentos necessários, ao menos no que tange a atividade legislativa, ou seja, naquilo que se refira às necessárias mudanças no texto da Constituição Federal ou na legislação infra-constitucional.

Disse não por acaso, porque de certo a propositura do debate e do diálogo partiu de quem, por detenção legítima, deve promover as adequações para o sucesso da missão institucional, republicana e democrática do controle, hoje não mais sob o aspecto idealizado por Montesquieu no modelo de freios e contrapesos concebido na separação hannônica e independente dos poderes, mas sim, considerando-se o autocontrole dos Poderes, o controle social e a necessária comunicação inter-institucional para a orientação de políticas públicas.

Ao comemorarmos vinte anos da promulgação da Carta Magna, vivemos ainda uma agenda constitucional intensa. O constituinte originário se confunde com o derivado, na medida em que em duas décadas já contamos com 56 emendas ao texto constitucional.

Se por um lado essa extensa pauta legislativa, seja de emendas aprovadas, seja de proposituras que tramitam nas duas Casas, pode eventualmente configurar uma instabilidade da Carta, por outro, pode também representar uma estabilidade democrática, na medida em que o Constituinte originário procurou materializar as carências e perspectivas das mais diversas classes que compõem esse País. Por isso, me filio à segunda corrente, que a visualiza como uma Carta estável, aberta, fazendo minhas as palavras do insigne Ministro Gilmar Mendes: “Por isso que não se pode considerar falhas essas ausências ou regulações detalhadas. Na verdade, trata-se de uma Constituição adequada para o Brasil, País marcado por tantas desigualdades. Digo eu, então: Apesar de seu inegável caráter analítico, a Carta Política de 1988 constitui uma ordem jurídica fundamental de um processo público livre, caracterizando-se, nos termos de Hiiberle, como uma “constituição aberta”, que toma possível a “sociedade aberta” de Popper , ou uma “constituição suave” (mitte), no conceito de Zagrebelsky, “que permite, dentro dos limites constitucionais, tanto a espontaneidade da vida social como a competição para assumir a direção política, condições para a sobrevivência de uma sociedade pluralista e democrática”.l

Permite-nos então a Constituição “cidadã”, como vem sendo ‘apelidada’, idealizar na busca da gestão possível, como também destacado nas palavras do Ministro,l. ainda que com “um quantum de utopia”, na medida em que, ao incorporar tanto o “princípio-responsabilidade” como o “princípio-esperança”, permite que nossa evolução constitucional ocorra entre a razão e a emoção.

Neste aspecto, o sistema de controle brasileiro urge por adequações que promovam sua consolidação como instrumento real da cidadania, merecendo o Tribunal de Contas especial atenção do Parlamento para que se devolva à sociedade as expectativas postas em seus mandatários.

o que espera a sociedade com o julgamento das contas dos gestores públicos? O que espera o Tribunal na aplicação das sanções pela malversação dos recursos públicos? A resposta é uníssona: A proteção do interesse público na efetiva recomposição dos danos causados ao erário.

E nesta resposta que estamos dando à sociedade, ou melhor, não dando, é que, a meu ver, reside a grande frustração das Cortes de Contas, ou seja, na ausência de eficácia de suas decisões, especialmente as que imputam débito e aplicam multas, vez que apesar do texto constitucional conferir às mesmas força de título executivo, não apontou o legitimado para executá-las.

Assim, milhões de débitos imputados aos maus gestores repousam nas prateleiras no aguardo do ajuizamento de ações de execução, revezando-se no pólo ativo a AGU, no caso da União e as Procuradorias, nos Estados e Municípios, enfim pela Advocacia Pública, instituição prevista nos artigos 131 e 132 da Carta Magna, a qual, mormente esteja no capítulo destinado às funções essenciais à Justiça, foi concebida para representar a União e os Estados judicialmente e extrajudicialmente e exercer atividades de consultoria e assessoramento jurídico ao Executivo de modo que suas funções se imiscuem de tal sorte no Poder Executivo que praticamente se inserem no seu contexto, de modo que muitas vezes o controle externo se depara com atos irregulares que foram levados a cabo com base em pareceres da própria Advocacia Pública, que terá então algum de seus membros responsabilizados solidariamente com o ordenador da despesa geradora do dano ao erário quantificado nas decisões dos Tribunais de Contas, às quais por configurarem título executivo e de certa forma um “crédito” a favor da União ou dos Estados, devem ser executados pela mesma Instituição que já opinou antes pela legalidade.

Isso tudo me parece um contra-senso, porque acaba ficando a seu próprio juízo decidir se aquela “causa”, configurada no título advindo da decisão do Tribunal de Contas, será ou não ajuizada. Alguns doutrinadores incluem as Procuradorias Fazendárias como detentoras desta legitimidade de execução, com

o que não concordo porque como se extrai do texto do §3° do art. 131 da CF, esta executa dívida ativa de natureza tributária, o que logicamente não é o caso, como também não há que se falar em inscrição na dívida ativa as decisões dos Tribunais de Contas porque sua força executiva já foi conferida pela Constituição.

Portanto o que se vê é que a sistemática vigente não funciona, não somente pelo que já fora exposto, mas porque muitas das vezes a chefia das Procuradorias e da própria Advocacia da União, em sendo da escolha do Chefe do Executivo, tem a característica de “cargo de confiança”. Isso tudo faz com que os Tribunais de Contas estejam em constante busca de artificios que facilitem a instrumentalização das ações de execução a serem ajuizadas, fazendo convênios (com a AGU no caso do Tribunal de Contas da União e com as Procuradorias de Estado, no caso dos TCEs), havendo Estados que o fazem com o Ministério Público Comum para que este atue como substituto processual em ação civil pública de caráter executório (aplicando-se subsidiariamente o inciso In do artigo 129 da CF), já que ao Ministério Público junto ao Tribunal de Contas, também não se projetou tal atribuição. Mesmo assim o resultado é incipiente.

Como consectário lógico das conclusões acima aduzidas, o aperfeiçoamento do controle exercido pelos Tribunais de Contas depende diretamente da atividade legislativa que a Carta da República mantém aberta, até pela inevitável constatação de que o legislador, quando exerce a atividade de legislar, não raras as vezes deixa lacunas, comandos implícitos, poderes e competências que reclamam expressa previsão, até para que se afunile a possibilidade de interpretações diversas ou mesmo conflitantes.

Inobstante causem calorosas discussões quanto à constitucionalidade, atualmente pode-se destacar a Proposta de Emenda à Constituição que tramita no Senado Federal que pode conferir aos Tribunais de Contas a efetividade pretendida pelo legislador constituinte, que, sob a inspiração de Rui Barbosa, idealizou para a sociedade moderna uma instituição de controle da gestão pública, profetizando a possibilidade que hoje se confirma do controle social.

A PEC nO 30/2005, de autoria do Senador Antonio Carlos Valadares, propõe nova redação ao §3° do art. 71 da Constituição Federal nos seguintes termos: “As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa gozarão de autoexecutoriedade, ficando o Tribunal investido de poderes constritivos típicos das autoridades judiciais para satisfação do crédito, respeitados os princípios do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da apreciação de lesão ou dano pelo Poder Judiciário, dentre outros.”

Entre muitas críticas que tenho ouvido daqueles que se contrapõem a essa idéia está a de que a locução que atribui ‘poderes típicos das autoridades judiciais’ aos Tribunais de Contas para a execução dos seus próprios títulos feriria a cláusula pétrea da separação dos Poderes, na medida em que chancelaria a órgão diverso do Poder Judiciário a prática de atos próprios deste Poder. Outro argumento é o de que as Cortes de Contas não teriam estrutura para tanto. E uma terceira, que me choca, é a de que a cultura do brasileiro é a de não pagar, de modo que pouco importa quem tenha a legitimidade ativa da propositura na execução dos títulos, posto que se assim não fosse o devedor pagaria espontaneamente, ou seja, independentemente de ações coercitivas. Quanto a este último entendimento, o vejo como pouco cívico, ou talvez inspirado nas reflexões antropológicas de Roberto DaMatta, sobre o qual não emito qualquer juízo, porque o vejo como um analista da sociedade brasileira em um universo de constatação, o que não implica em que seja abandonada a idéia de transmutação destas constatações, afinal o ser humano e tudo o que o envolve não é estático. É claro que esta minha postura já me rendeu o adjetivo de “quixotesca”, mas ainda assim prefiro acreditar que vale a pena investir no homem e no resgate dos valores da ética, da moralidade, da honestidade e de que ainda viveremos em uma sociedade menos desigual.

No que concerne a eventual invasão de um Poder no outro ferindo a citada cláusula pétrea, vejo que quando o constituinte originário previu que as Comissões Parlamentares de Inquérito têm poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, o que está inscrito no §3° do artigo 58 da CF já tinha em mente a separação dos Poderes como cláusula pétrea, mesmo assim, manteve tal redação. Por outro lado, entendo que a ausência da expressão ‘típicos das autoridades judiciais’, na propositura da PEC nO 30/2005, não alteraria os efeitos a que se propõe, porque também na linha do que pensa o ilustre Ministro Carlos Britto, vejo as Cortes de Contas não como órgãos de natureza jurídica meramente administrativa e consequentemente também não o são suas decisões, porque não mereceria o nome de Tribunal uma instituição autônoma, cujos Membros têm as mesmas prerrogativas e vedações funcionais dos Magistrados, tendo seu contorno de funcionamento e competência inteiramente traçado no texto constitucional que fala em jurisdição do Tribunal de Contas e no artigo 73 faz expressa remissão ao artigo 96, que trata da competência privativa dos Tribunais judiciais.

 

Quanto à estrutura para execução destes títulos, isso se cria, e não demandaria grandes gastos, sobretudo na era da digitalízação que estamos vivendo, onde o próprio Poder Judiciário já faz uso do recurso da virtuali-zação processual, logicamente com a garantia do contraditório e da ampla defesa, o que aliás é respeitado no julgamento dos demais processos da competência dos Tribunais de Contas.

 

o acatamento desta PEC chancela o entendimento do Ministro Celso de Mello, quando apreciou em caso concreto a missão institucional dos Tribunais de Contas: “( …) o regime de controle externo, institucionalizado pelo ordenamento constitucional, propicia, em função da própria competência fiscalizadora outorgada aos Tribunais de Contas, o exercício, por esses órgãos estatais, de todos os poderes -explícitos ou implícitos -que se revelem inerentes e necessários à plena consecução dos fins que lhes

foram cometidos. ,,1

Ressalto ainda a existência da PEC n° 27/2007, de autoria do Senador Pedro Simon, que vem dar nova redação ao artigo 130 no seguinte sentido: “O Ministério Público junto aos Tribunais de Contas é instituição permanente, essencial à função do controle externo da Administração Pública, dotada de autonomia funcional e administrativa, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Parágrafo único. Aos membros do Ministério Público Especial junto aos Tribunais de Contas aplicam-se as disposições desta Seção, inclusive as pertinentes a direitos, vedações e forma de investidura.” (NR)

Vale dizer que não há no texto constitucional qualquer referência acerca das funções ou atribuições do Ministério Público Especial junto ao Tribunal de Contas, que só se encontra em nível infraconstitucional, como por exemplo na Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União. A referência a esta instituição se resume à citação contida no §2°, do inciso I do artigo 73 e no artigo 130 da Constituição Federal e sua situação junto aos Tribunais de Contas se caracteriza numa subutilização de estrutura tão onerosa aos cofres públicos. Não tendo esta instituição independência administrativa nem financeira, acredito que não surtiu o efeito esperado pelo constituinte de 88, apesar dos ocupantes destes cargos terem as mesmas garantias e prerrogativas, inclusive mesmos subsídios, dos integrantes do Ministério Público a que se refere o artigo 128 da CF e com funções indefinidas, porque, como dito acima, estas não foram traçadas constitucionalmente, variando, assim, de Estado para Estado e na maioria das vezes limitando-a ao exercício da função de custus legis, sem embargo da grande luta que os integrantes desse parquet especializado tem feito ao longo dos anos para se fixar em atribuições maiores, muitas vezes semelhantes às elencadas no art. 129, o que, afora o louvável esforço, não resulta, na prática, em fixação de competências e atribuições, o que só se conquista por lei.

Vejo nesta propositura que, além de se conferir autonomia administrativa e financeira ao Ministério Público que atua junto aos Tribunais, apenas uma tentativa de suprimir a omissão da Constituição acima referida, entretanto a forma genérica do caput da propositura, que delega a tutela dos interesses coletivos e individuais indisponíveis, como o são, por exemplo, os recursos do erário, ainda deixa a lacuna das funções institucionais, que a meu ver deveriam se relacionar intimamente às competências elencadas nos incisos de I a XI e §§ 1 ° a 4° do artigo 71, afetas ao controle externo a cargo dos Tribunais de Contas, onde poderia se inserir a legitimidade ativa para propositura judicial da execução dos títulos previstos no §3° do citado artigo, por exemplo.

Por fim, tenho ainda, como alternativa plausível, uma emenda constitucional que desse nova redação ao inciso lU do art. 129, para incluir nas funções institucionais do Ministério Público dito comum, a execução dos títulos emanados do Tribunal de Contas da União, previsto no §3° do art. 71 da Constituição Federal, que teria então a seguinte redação: “( …) lU _ promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, inclusive a execução dos títulos oriundos das decisões do Tribunal de Contas da União de que resulte imputação de débito ou multa.”

Entendo que esta alternativa encontra guarida constitucional, vez que pela natureza pública dos recursos advindos das decisões de aplicação de multas e imputação de débitos exaradas pelos Tribunais de Contas, tais receitas e a recomposição dos danos causados ao erário se inserem juridicamente no rol dos interesses sociais e individuais indisponíveis, direitos tutelados pelo Ministério Público, previstos no artigo 127 da Constituição Federal.

 

Ademais, não estou inovando nada com isso, porque, como já dito antes, em muitos Estados o Ministério Público já vem atuando para dar eficácia às decisões dos Tribunais de Contas através do ajuizamento de ação civil pública de caráter executório, como substituto processual levando em conta a natureza pública do recurso, experiência esta que tem trazido resultados. Exemplo desta prática se encontra no Rio Grande do Sul, Maranhão, dentre outros.

Por todo o exposto, repito, resta cristalino que o sistema vigente não é eficaz. Assim, se por um lado muito se discute a despolitização na forma de composição dos Tribunais de Contas, por outro há que se rever também esta condição de ineficácia do resultado daquilo que os Tribunais de Contas apuram na malversação dos recursos públicos, por mera falta de um comando constitucional apropriado.

Entretanto, penso que os Tribunais de Contas se encontram numa situação ambivalente: de frustração e de desafio. A primeira por tudo aquilo que já fora exposto, e a segunda, estimulante face ao momento político que estamos vivendo que é muito positivo para a correção das lacunas da Constituição Federal, especialmente porque a discussão acerca do sistema de controle no Brasil já foi aberta no Senado Federal com o ciclo de audiências públicas realizadas a requerimento do ilustre Senador Casagrande, as quais por certo trarão frutos positivos.

Ademais, ao se comemorar duas décadas da Constituição Federal, renova-se o espírito democrático e republicano que a inspirou, sobretudo pelo fato de que o sistema político calcado na idéia da representatividade está sempre reclamando do aparato estatal transfonnações das estruturas e estratégias de poder e das próprias significações políticas, de modo que mesmo que a resolução da maioria das necessidades materiais não tenha o condão de colocar o homem sempre a salvo, estas atendam ao interesse coletivo, à dignidade das pessoas e atuem contundentemente na defesa das minorias.

1 Discurso do presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, no seminário “20 Anos da Constituição Cidadã”, Brasília, 10 de junho de 2008.

2 Idem.

3 Alexandre de Moraes, 2006, p. 1250.

Doris de Miranda Coutinho