A possibilidade de aplicação do controle de convencionalidade pelos Tribunais de Contas brasileiros

Auditoria e Controle

Bruno Dantas
Pós-Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Visiting Research Scholar na Benjamin N. Cardozo School of Law de N.Y. e no Max Planck Institute Luxembourg for Regulatory Procedural Law. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor da FGV-Rio e da UNINOVE. Ministro do Tribunal de Contas da União (TCU).

André Luiz de Matos Gonçalves
Doutorando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), em parceria com a Escola Superior da Magistratura Tocantinense (ESMAT) e a Escola Paulista de Magistratura (EPM). Graduado em Comunicações pela Academia Militar das Agulhas Negras (1999) e em Direito pela Universidade de Fortaleza (2005). Foi Reitor da Universidade do Tocantins – Unitins e Professor de Direito Constitucional; também foi Procurador efetivo do Estado do Tocantins. É Conselheiro Titular da Segunda Relatoria do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins e Sócio fundador do Instituto de Direito Aplicado ao Setor Público – IDASP.

Júlio Edstron S. Santos
Doutor em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Mestre em Direito Internacional Econômico pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Diretor Geral do Instituto de Contas 5 de outubro do TCE-TO. Professor e Coordenador Acadêmico do IDASP/Palmas. Membro dos grupos de pesquisa Núcleo de Estudos e Pesquisas Avançadas do Terceiro Setor (NEPATS – UCB) e Políticas Públicas e Juspositivismo, Jusmoralismo e Justiça Política (UniCEUB). Editor Executivo da REPATS. E-mail: edstron@yahoo. com.br.


Resumo: No atual paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito há uma clara autolimitação da atuação estatal, que deve cumprir fielmente as leis, ensejando a criação e atuação de órgãos especializados no controle da Administração Pública, até mesmo externos, como os Tribunais de Contas. Também se reconhece que na história constitucional brasileira, sobretudo, na Constituição de 1988, houve o reconhecimento da importância dos tratados internacionais, que atualmente possuem o status de normas supralegais ou convencionais. Em síntese, na atual doutrina e na jurisprudência, há o reconhecimento de que os tratados, que não foram recepcionados de acordo com o rito especifico previsto pelo texto constitucional, com a EC nº 45/2002, estão subordinados à Norma Ápice e vinculam a validade normativa das demais espécies normativas brasileiras. Assim, há o dever estatal de aplicar o controle de convencionalidade, inclusive, pelos Tribunais de Contas, seja no âmbito federal, estadual ou municipal.
Palavras-chave: Tratados internacionais. Controle de convencionalidade. Tribunais de Contas.
Sumário: 1 Introdução – 2 Os Tribunais de Contas no paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito e o seu desafio de realizar o controle externo brasileiro – 3 Os tratados internacionais e a sua hierarquia normativa no Brasil: um relacionamento atual e muito próximo entre ordens jurídicas – 4 O controle de supralegalidade/convencionalidade como autolimite à competência legislativa do Estado brasileiro – 5 Considerações finais – Referências


Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio? Bertolt Brecht

1 Introdução

Por meio da revisão bibliográfica e análise de casos específicos, este trabalho acadêmico demonstrará que é possível a aplicação do controle
de convencionalidade das leis pelos Tribunais de Contas Brasileiros, utilizando-se do método hipotético-dedutivo como fio condutor de toda a pesquisa realizada.

Assim, foi estabelecida uma sintética reconstrução dos paradigmas constitucionais, distinguindo-se os modelos liberais e sociais do padrão que atualmente é presenciado o Estado Democrático de Direito, um parâmetro ainda em construção. Caminho percorrido para se delinear que as Cortes de Contas têm um papel importante na construção do atual paradigma constitucional, principalmente no tocante à efetivação dos direitos, deveres e garantias fundamentais e no controle das ações da Administração Pública, em uma sociedade cada vez mais complexa, denominado por Ulrich Beck de ambiente em metamorfose, devido às constantes alterações estruturais que são experimentadas no cotidiano.

Foi destacado que no Brasil os Tribunais de Contas foram elevados ao patamar constitucional, desde a primeira constituição republicana no ano de 1891, por influência estadunidense, trazida pelo jornalista, jurista e político Rui Barbosa.

Em seguida serão apontados os fundamentos dos tratados internacionais, dissertando que ao longo da história jurídica brasileira esses instrumentos jurídicos receberam constante atenção da ordem constitucional, sendo que atualmente podem inclusive equivaler com os direitos recepcionados pela Constituição de 1988.

Dois pontos foram enfocados, o primeiro é que há um aumento no entrelaçamento entre as ordens jurídicas interna e internacional, devido a fenômenos como a globalização e mundialização. Essa situação favorece a celebração de tratados que conferem maior confiança às relações estabelecidas pelos sujeitos de direito internacional, que são os Estados e organismos internacionais, segundo a teoria clássica, e este rol é acrescido da pessoa humana, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial atual. Já o segundo mote estabelecido nesse tema foi a hierarquia dos acordos internacionais celebrados pelo Brasil e que são internalizados, nos moldes constitucionais.

Sobre esse assunto será demonstrado que existem quatro teorias, as quais defendem que os tratados internacionais celebrados e ratificados pelo Brasil podem possuir hierarquia supraconstitucional, constitucional, supralegal ou ainda se equivaler a lei ordinária. As diferenças em cada uma das teorias estão nos entendimentos sob os aspectos formais, ou seja, o rito de recepção ou mesmo na matéria que é o assunto que versa o tratado.

A posição que será adotada nesta pesquisa é que os tratados internacionais, ratificados e internalizados pela República brasileira podem ser recebidos com status equivalente ao da Constituição, quando amparados pelas previsões do artigo 5º, III, e terão hierarquia supralegal quando não estiverem de acordo com as positivações do mesmo dispositivo constitucional.

Por consequência, nos acordos internacionais que o Brasil fizer parte e forem ratificados pela estrutura republicana, passam a integrar o ordenamento jurídico nacional com status equivalente aos dos direitos fundamentais e estão em posição hierarquicamente superior as leis infraconstitucionais. Dessa maneira, os tratados que forem ratificados fora do rito condicionado pelo artigo 5º, III, estão subordinados à Constituição e estabelecem um filtro de validade a aplicação das demais normas jurídicas, sendo esse padrão denominado de controle de convencionalidade.

Ao se reconhecer o controle de convencionalidade, se estabelece o dever de sua aplicação pelos magistrados nacionais, inclusive os investidos nos Tribunais de Contas, seja da União, dos Estados ou ainda dos Municípios. Sobretudo, em temas ligados à Administração Pública, como as Convenções das Organizações Unidas e dos Estados Americanos, que foram ratificadas pela República brasileira, ou ainda os acordos de tributação ou bitributação que incidem sobre Estados membros ou municípios.

O ponto fulcral é que os Tribunais de Contas reconhecidamente devem zelar em suas atuações pela escorreita aplicação das normas jurídicas, principalmente, conduzindo à aplicação dos filtros do controle de constitucionalidade e convencionalidade, tal como possibilitam os dispositivos que estabeleceram sua competência constitucional.

Portanto, esta construção acadêmica demonstrará que os Tribunais de Contas, nas funções consultivas e jurisdicionais, atinentes àquelas cortes podem (e devem) aplicar o controle de convencionalidade, uma vez que se trata de um parâmetro para criação e interpretação das normas jurídicas brasileiras.

2 Os Tribunais de Contas no paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito e o seu desafio de realizar o controle externo brasileiro

“O constitucionalismo moderno se afirma com as revoluções burguesas na Inglaterra em 1688; nos Estados Unidos, em 1776, e na França em 1789” (QUADROS, 2009, p. 92), sendo que, com a superação do modelo absolutista, houve o reconhecimento dos paradigmas do Estado liberal e social, ocorrendo ainda a consignação da necessidade de promoção de mecanismos de controle das ações estatais e principalmente das atividades desenvolvidas pela própria Administração Pública, criando-se órgãos internos e externos1 de controle, como, por exemplo, os Tribunais de Contas, que paulatinamente ganharam relevância e passaram a responsabilizar os gestores públicos e os próprios entes estatais por ilegalidades, desvios de finalidade ou cometimento de crimes contra o erário, tal como preceitua o artigo 71, II, da Constituição Cidadã, reconhecendo-se que suas atividades são “uma decorrência do Estado Democrático de Direito”, tal como apontaram Gilmar Mendes e Paulo Branco (2018, p. 1.526) ou, ainda, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:


1 “O controle externo é aquele realizado por poder ou órgão diverso do controlado, é o controle externa corporis atuando, atuando de forma independente e autônoma em relação a este. Estamos falando aqui do Controle exercido pelo Congresso Nacional com auxílio dos Tribunais de Contas, conforme preceitua o art. 71, caput, da CF/88” (MENDES; BRANCO, 2018, p. 1.526).


Em decorrência da amplitude das competências fiscalizadoras da Corte de Contas, tem-se que não é a natureza do ente envolvido na relação que permite, ou não, a incidência da fiscalização da Corte de Contas, mas sim a origem dos recursos envolvidos, conforme dispõe o art. 71, II, da CF. [MS 24.379, rel. min. Dias Toffoli, j. 7-4-2015, 1ª T, DJE de 8-6-2015.]. (BRASIL, 2019d, p. 729)

No contexto brasileiro apenas com a segunda constituição nacional, ou seja, a Constituição Republicana de 1891, houve o nivelamento do Tribunal de Contas, com o seu status constitucional, sendo as suas funções descritas na obra original do invulgar jurista Rui Barbosa (1934), escrita há mais de um século, mas são ainda bastante relevantes, porque, segundo o autor, as Cortes de Contas são:

[…] um sistema protetor da ordem jurídica contra abusos do poder na administração e na legislatura, sistema pelo qual se defendem os atos do Poder Legislativo contra os do Executivo e as disposições da Constituição contra as leis que as transgridam. (1934, p. 448)

Constata-se que dos seus primórdios à atualidade, as Cortes de Contas vêm constantemente evoluindo, chegando-se à conclusão de que “em virtude das prerrogativas e das garantias que lhe foram atribuídas pela Constituição Federal de 1988, os órgãos de controle posicionam-se como peças-chave para o desenvolvimento das instituições” (DANTAS; DIAS, 2018, p. 105). Constatando-se: “o âmbito operacional implica na análise das atividades desenvolvidas pela Administração Pública. Sua atuação e o desenvolvimento de suas atividades gerenciais objetivando chegar a uma finalidade de interesse público”, tal como lecionaram Fernando e Luma Scaff (2018, p. 1.252). Portanto, as competências das Cortes de Contas buscam a concretização dos preceitos constitucionais, principalmente, a efetivação dos direitos, deveres e garantias essenciais, perseguidos nas políticas públicas que são desenvolvidas pela gestão pública, devendo reconhecer que:

A ordem constitucional estabelecida em 1988 teve o desafio de instituir um Estado Democrático de Direito capaz de satisfazer os anseios da população, carente de um Estado transparente, eficiente e que pudesse elevar os padrões de vida dos cidadãos. (BARROS FILHO, 2014, p. 479)

Os Tribunais de Contas, sejam da União, dos Estados, bem como dos Municípios, exercem, além da função de fiscalização, a prerrogativa de promover a indução do desenvolvimento da Administração Pública e da própria sociedade, podendo desenvolver diálogos interinstitucionais, lastreados em parâmetros éticos e jurídicos e também valorativos como o reconhecimento da necessidade de implantação de instrumentos de governança, compliance e accountability, tal como observou Coelho (2016), ou, ainda, de maneira doutrinária:

A promulgação da Constituição Federal de 1988 certamente trouxe evoluções na execução das competências dos Tribunais de Contas. Principalmente, o próprio Estado brasileiro mudou e se tornou mais complexo, o que demandou uma restruturação técnica e de competências dos Tribunais de Contas para satisfazer novas demandas sociais. Além disso, a própria estrutura dos Tribunais se mostrou mais aberta aos princípios constitucionais […]. (BARROS FILHO, 2014, p. 489)

Assim, os instrumentos de controle interno e externo devem atuar cada vez mais contundentes contra ilegalidades e desvios do erário, amparados na legalidade2 e moralidade, evitando danos e responsabilizando as pessoas naturais ou jurídicas que causem prejuízo à população, como os graves casos de corrupção que são documentados no Brasil, mas não podem substituir a legitimidade democrática conferida pelo voto, ou na lição do Ministro Bruno Dantas:

A hipertrofia do controle gera a infantilização da gestão pública. Agências reguladoras e gestores públicos em geral têm evitado tomar decisões inovadoras por receio de terem atos questionados.

Ou pior: deixam de decidir questões simples à espera de aval prévio do TCU. Para remediar isso, é preciso introduzir uma dose de consequencialismo. (DANTAS, 2018, p. 4)


2 “[…] a atribuição de poderes explícitos, ao Tribunal de Contas, tais como enunciados no art. 71 da Lei Fundamental da República, supõe que se lhe reconheça, ainda que por implicitude, a titularidade de meios destinados a viabilizar a adoção de medidas cautelares vocacionadas a conferir real efetividade às suas deliberações finais, permitindo, assim, que se neutralizem situações de lesividade, atual ou iminente, ao erário público. Impende considerar, no ponto, em ordem a legitimar esse entendimento, a formulação que se fez em torno dos poderes implícitos, cuja doutrina, construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no célebre caso McCulloch v. Maryland (1819), enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos fins que lhe foram atribuídos. […] É por isso que entendo revestir-se de integral legitimidade constitucional a atribuição de índole cautelar, que, reconhecida com apoio na teoria dos poderes implícitos, permite, ao TCU, adotar as medidas necessárias ao fiel cumprimento de suas funções institucionais e ao pleno exercício das competências que lhe foram outorgadas, diretamente, pela própria Constituição da República. [MS 24.510, rel. min. Ellen Gracie, voto do min. Celso de Mello, j. 19-11-2003, P, DJ de 193-2004.]” (BRASIL, 2019c, p. 721).


Nesse sentido, sob a ótica do paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito, a sociedade atual não pode coadunar com nenhum excesso, nem dos particulares e tampouco da Administração Pública em sentido amplo, incluindo os órgãos de Controle, como, por exemplo, os Tribunais de Contas. Assim, as Cortes de Contas devem atuar como indutores da legalidade e regularidade e também têm o desafio de promover o aperfeiçoamento da democracia brasileira, com a proposição de diálogos interinstitucionais com a sociedade civil organizada, ou conforme demostra a doutrina sobre esse assunto:

A transposição ao Estado Democrático de Direito trouxe aos tribunais de contas alargamento do feixe de finalidades da atividade de controle externo que, deixando de lado unicamente o foco na legalidade, fundado na técnica positivista, formalista de subsunção à lei do objeto do controle, ganha novo colorido com a finalidade de também sindicar a legitimidade e economicidade da despesa pública, inclusive da aplicação de subvenções e renúncia de receitas, consoante previsto no art. 74 da Constituição Federal. (ELIAS, 2011, 45)

Prosseguindo com os questionamentos feitos a partir dos modelos estatais, liberais e sociais, busca-se concretizar o paradigma do Estado Democrático de Direito, em que basicamente objetiva, além da concretização dos direitos, garantias fundamentais, o controle dos recursos públicos e a inserção da necessidade de participação dos cidadãos como um critério de legitimidade das ações estatais, devido ao fundamento republicano da cidadania, tal como previsto no artigo, 1º, inciso II, da Constituição Cidadã.

Deve-se lembrar ainda que o atual modelo do Estado Democrático de Direito (EDD) é um paradigma constitucional em construção, seus contornos ainda não estão totalmente definidos, sendo marcado principalmente pelo dever de se fazer o reconhecimento da cidadania e dignidade da pessoa humana, enquanto alicerces de toda a ação estatal, bem como ele é distinguido dos seus antecessores por recorrentes dificuldades consensuais, já que atualmente a sociedade é complexa, antagônica e em metamorfose, tal como consagrou Ulrich Beck (2018), causando desafios de toda ordem, sobretudo, a Administração Pública e consequentemente ao controle externo.

Nessa esteira, se reconhece que um dos principais progressos científicos reconhecidos no EDD é o entendimento que ele é um meio para a efetivação da cidadania participativa e inclusiva, com a inserção das pessoas nos processos de tomadas de decisão e geração de resultados das atividades públicas, tais como os conselhos representativos, e, desta maneira, atuam na cristalização dos direitos e garantias fundamentais, com a participação da sociedade civil organizada, atuando como “uma chave interpretativa do Direito Constitucional democrático contemporâneo e suporte teórico para a interpretação e aplicação adequadas do Direito Constitucional brasileiro vigente” (CATTONI, 2002, p. 25).

Portanto, do modelo de Estado Absoluto dos séculos XV a XVII ao contexto atual, houve uma mudança estrutural devido a fatores, como a mundialização (SILVA, 2015) e globalização (BAUMAN, 1999), que proporcionaram avanços nas áreas de telecomunicações e transportes, mas também desafios como o aumento da volatilidade dos mercados nacional e internacional, impulsionado por esses fatores. Já se teorizou que deve ocorrer um Estado Constitucional Democrático Cooperativo, que se articula em rede com agentes públicos e privados, no contexto interno e internacional, como lecionou Peter Haberle (2003), atuando em um tecido de proteção aos direitos, garantias e controles fundamentais da Administração Pública e da sociedade em metamorfose, como teorizou Ulrich Beck (2018).

3 Os tratados internacionais e a sua hierarquia normativa no Brasil: um relacionamento atual e muito próximo entre ordens jurídicas

Historicamente, desde a proclamação da República, todas as constituições brasileiras reconheceram a possibilidade de ratificação de tratados internacionais, contudo, apenas na Norma Ápice de 1988 os direitos humanos previstos nos tratados passaram a ter relevância material fundamental, tal como é expresso no art. 5º, §2º, consagrando a cláusula de abertura constitucional a ordem jurídica internacional.

Ainda sob o prisma histórico, como consequência da queda do muro de Berlim e a superação da “Guerra Fria”, ocorreram variadas alterações geopolíticas em escala planetária, bem como foi reforçado que “o imaginário ligado à globalização nos remete a várias nuances”, tal como demonstrou Godoy (2004, p. 18). Sendo que uma das mudanças mais sensíveis em nosso país foi a integração entre a produção normativa nacional e a internacional, seguindo um padrão de questionamento global tal como lecionaram Magnoli e Barbosa (2013).

Impulsionado pela aproximação entre o direito interno e internacional, o atual paradigma do Direito Internacional Público se sedimenta na cooperação entre os Estados e os Organismos Internacionais, devido ao processo de globalizações, tal como constatado por Boaventura de Sousa Santos (2010). Esse parâmetro cooperativo proporcionou condições para a intensificação dos processos de integração, fundamentadas no princípio do consentimento, que é o pilar central das relações internacionais contemporâneas. Dessa maneira, o consentimento estatal é considerado a base da realização de acordos internacionais entre os sujeitos de Direito Internacional Público, acordos esses que atualmente recebem o nome de tratados internacionais.

Ressalta-se, que os tratados são, hoje, uma das principais fontes do Direito Internacional Público, superando a doutrina que no passado questionava a possibilidade de perda da soberania pelos Estados, ao celebrarem algum acordo internacional. Entendemos que essa questão se encontra superada, com base no Julgamento da Corte Permanente de Justiça no emblemático “Caso Wimbledon” ainda em 1923. bem como, para Trindade (2002, p. 35), “a conclusão de um tratado, qualquer que ele, seja jamais implica em (sic) abandono da soberania do Estado”. Dessa forma, a conclusão de um tratado não significa a extinção da soberania estatal, mas apenas uma demonstração da mesma, já que cada Estado escolhe livremente qual tratado irá ratificar e, em regra, por quanto tempo permanecerá como signatário do mesmo.

Também há de se lembrar de que, inegavelmente, na atualidade, nota-se que os acordos internacionais celebrados por escrito, que envolvem qualquer tipo (tratados, convenções, painéis, etc.) limitam, ou melhor, autolimitam a competência legislativa estatal, já que estabelecem parâmetros de atuação do próprio Estado, seja na seara interna ou na internacional, principalmente no manejo dos direitos humanos, tal como dissertado por Santos (2019).

Há de se balizar pelas previsões da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, que assim preceitua: “Por tratado entende-se o acordo internacional celebrado por sujeitos de Direito Internacional”. Ainda não se olvidando que o Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009, internalizou, no Brasil, a referida convenção sobre os tratados, definindo-o em seu artigo primeiro, de forma mais abrangente como:

[…] tratado significa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica. (BRASIL, 2019a)

Nessa linha de raciocínio, tratado é todo acordo internacional escrito, celebrado por sujeitos de Direito Internacional Público, em consonância com os ditames do paradigma cooperacional vigente, que estabelecem direitos e/ou obrigações entre as partes signatárias, tal como lecionou Haberle (2007) ou como aponta a doutrina internacionalista:

O próprio termo “tratado” é o mais usado no contexto dos acordos internacionais, mas há diversas palavras que podem ser, e às vezes são, usadas para expressar o mesmo conceito: protocolo, ato, carta, convênio, pacto e concordata. Cada um desses termos refere-se à mesma atividade básica, e o uso de um em vez de outro frequentemente implica pouco mais que a busca pela variedade de expressão. (SHAW, 2010, p. 671)

Também se deve elucidar a posição do jus internacionalista Francisco Rezek (2016, p. 40), para quem: “o tratado é um acordo formal: ele se exprime, com precisão em determinado momento histórico, e seu teor tem contornos bem definidos”. Sendo, neste sentido, importante entender a necessidade de internalização dos tratados internacionais, para que se efetive a produção dos seus efeitos dentro de nosso país, ou seja, eles precisam passar por um processo de ratificação pelos órgãos internos, o que é denominado como poder de celebrar tratados ou traty-making power.

Ainda, Antônio Cachapuz de Medeiros em sua obra, demonstrou que o traty-making power foi um conceito criado por Henry Wheaton em 1836, autor que “teve o mérito de estabelecer cristalina distinção entre a capacidade internacional do Estado e a competência dos poderes constituídos do Estado para celebrar tratados” (1995, p. 145). Seguindo, apesar de certas tendências ocidentais, cada Estado estabelece internamente os ritos para a recepção dos tratados internacionais. No Brasil, o Chefe de Estado tem competência privativa para celebrar os tratados. Contudo, caso haja algum “compromisso gravoso ao patrimônio nacional”, o tratado deverá ser submetido ao Congresso Nacional que, aceitando-o, elaborará um decreto legislativo. Após a aceitação do parlamento, a Presidência da República deverá promulgar um decreto executivo internalizando o documento internacional, finalizando, um processo complexo de internalização de uma norma internacional, como, por exemplo, as Convenções contra Corrupção da ONU, pelo Decreto nº 5.687/2006 e Convenção Interamericana Contra a Corrupção, recepcionada pelo Decreto executivo nº 4.410/2002, sendo que ambas têm status supralegal ou convencional tal como doutrinado por Mazzuolli (2019).

Seguindo esse raciocínio, devido ao atual paradigma constitucional cooperacional e, principalmente, devido à voluntariedade estatal, segundo a qual nenhum Estado pode ser obrigado a participar de um tratado internacional contra sua vontade, tem-se como consequência o entendimento de que o Direito Internacional é mais efetivo que o Direito interno. Isso porque os sujeitos de direito internacional, além de participarem efetivamente da produção das normas, buscam espontaneamente sua cristalização, já que é de seu pleno interesse, a concretização dos preceitos instituídos.

Os tratados atualmente são uma das principais fontes do Direito Internacional Público, por apresentarem uma maior facilidade de comprovação entre os envolvidos (eles estão escritos!). Assim, os acordos escritos são os instrumentos internacionais que mais recebem atenção por parte dos Estados em suas relações jurídicas e políticas internacionais. Nesse sentido, conforme Shaw, “é importante perceber que os Estados precisam do Direito para atingir certos objetivos, que vão desde o bem-estar econômico até a promoção de uma ideologia, passando por segurança ou pela simples sobrevivência” (2010, p. 38), assim, reforça-se o entrelaçamento das ordens jurídicas nacionais e internacionais.

Também há de se constatar que os tratados podem ser classificados de diversas maneiras. Mas foram perseguidos apenas dois critérios: o primeiro é o formal, que diz respeito ao procedimento utilizado para que eles entrem em vigor. Como exemplo, tem-se um rito especifico para a celebração de um acordo internacional bilateral e outro para instrumentos multilaterais. No Brasil, há uma significativa diferença nos ritos de tratados que trazem ou não encargos onerosos ao Estado, baseados na necessidade de revisão do Congresso Nacional; o segundo é o da matéria, ou seja, cada acordo internacional possui um assunto específico. Distinguindo-se ainda que Estado brasileiro celebra diversos tipos de acordos internacionais, como: cooperação técnica, econômico, investimento ou de direitos humanos e outros. Sendo ainda “essa classificação material está relacionada ao conteúdo e leva em consideração o fato de que alguns tratados internacionais são efetivamente normas de natureza obrigatória”, afirmou Guerra (2013, p. 91).

Além disso, há de ser destacado o momento de entrada dos tratados em vigor, sendo a sua vigência feita em momentos diferidos, tendo em vista a complexidade de compatibilizar os procedimentos internacionais com os internos: “[…] momento próprio – idealmente, aquele em que coincidam a entrada em vigor no plano internacional e idêntico fenômeno nas ordens jurídicas interiores às partes” (REZEK, 2016, p. 103).

3.1 Um panorama sobre a hierarquia dos tratados no sistema jurídico brasileiro

Tal como alinhavado, os tratados internacionais são importantes instrumentos de efetivação de direitos e obrigações entre os Estados, Organismos Internacionais e as pessoas humanas, aproximando as ordens jurídicas internas e internacionais e proporcionando um intercâmbio constante de ideias, instrumentos, standards e também de problemas da sociedade global, sobretudo, quanto a concretização dos direitos humanos.

Se destaca que os tratados ratificados são autolimites reconhecidos pelo Estado, já que estabelecem parâmetros para a atuação estatal frente ao sistema jurídico interno e internacional. Ou, ainda, conforme voto apresentado pelo Min. Celso de Mello de forma lapidar no HC nº 87.585/TO: “O respeito e a observância das liberdades públicas impõem-se ao Estado como obrigação indeclinável, que se justifica pela necessária submissão do Poder Público aos direitos fundamentais da pessoa humana”.

O reconhecimento dos tratados de direitos humanos impõe uma mudança na estrutura do próprio Estado, tendo em vista, que eles estabeleceram novos limites à atuação estatal, forçando-o a se adaptar às previsões e à estrutura internacional, que, cada vez mais, buscam integrar o ser humano à proteção dos sujeitos de direito internacional. Nessa perspectiva, o texto da atual Constituição brasileira inovou ao reconhecer, expressamente, que a República deve se balizar, em suas relações internacionais, pela “prevalência dos direitos humanos”. Impondo, um claro parâmetro hermenêutico, esses direitos essenciais são o paradigma a ser perseguido na atuação do Estado, ou de forma doutrinaria: “O atual texto constitucional se consagrou como o maior instrumento de proteção de direitos humanos da história de nosso povo”, Siqueira Júnior (2003, p. 48).

Exemplo diverso das mudanças provocadas pelo sistema internacional foi a adaptação estrutural efetivada no ordenamento jurídico brasileiro, com a promulgação da Emenda Constitucional (EC) nº 45, em 2004. Constata-se que essa alteração constitucional elevou ao nível equivalente ao constitucional os tratados internacionais de direitos humanos, aprovados com ritos próprios e afinados com o procedimento de positivação de ECs. Isso proporcionou condições materiais e formais de reconhecimento dos direitos humanos como direitos fundamentais.

A adaptação no ordenamento jurídico, proporcionada pela referida EC nº 45/2004, também forneceu condições para que a soberania estatal fosse revisitada ou, conforme Mazzuoli (2017), a doutrina da soberania estatal absoluta, desde o fim da Segunda Guerra, vem sendo foco de crescente preocupação, ante a necessidade de efetivação dos direitos humanos no plano internacional. Isso intensificou a já referenciada crise da soberania estatal, com o reconhecimento de que o plano constitucional é aberto e inclusivo, ao tempo em que se busca uma “sociedade aberta de intérpretes”, como propugnou Peter Haberle (2005).

A aceitação constitucional, como um texto aberto, reflete a tendência dos demais países da América Latina de integrar ao sistema constitucional os tratados de direitos humanos, da seguinte maneira:

As Constituições latino-americanas estabelecem cláusulas constitucionais abertas, que permitem a integração entre a ordem constitucional e a ordem internacional, especialmente no campo dos direitos humanos, ampliando e expandindo o bloco de constitucionalidade. Ao processo de constitucionalização do Direito Internacional conjuga-se o processo de internacionalização do Direito Constitucional. (PIOVESAN, 2006, p. 46)

No plano iminentemente teórico existem quatro correntes sobre à hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos: 1) a que aponta a natureza supraconstitucional dos tratados internacionais de direitos humanos; 2) a que reconhece a natureza constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos; 3) a que aponta a natureza de lei ordinária dos tratados internacionais de direitos humanos; 4) a que defende a natureza supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos.

A primeira concepção foi encabeçada, no Brasil, pelo jus internacionalista Celso Albuquerque de Mello (2007), que, em resumo, propôs que os acordos ratificados no Brasil estão acima do parâmetro constitucional, já que se constituem em um mínimo jurídico entre os Estados soberanos.

Inicialmente queremos lembrar que o Estado não existe sem um contexto internacional. Não há Estado isolado. A própria noção de Estado depende da existência de uma sociedade internacional. Ora, só há Constituição onde há Estado. Assim, sendo a Constituição depende também da sociedade internacional. (MELLO, 2007, p. 20)

Apesar da tentação inicial de se concordar com essa posição teórica, tem-se que a sua aceitação levaria a um monismo jurídico com forte concentração na norma internacional, já proposto por Kelsen (2003) em suas obras da década de 1920 e 1930. Quase automaticamente, seria enfraquecida a jurisdição constitucional e, consequentemente, a estrutura estatal vigente.

Bem como, as segunda, terceira e quarta correntes jurídicas foram objeto de análise pelo STF, sendo necessária uma digressão histórica que demonstre a hierarquia dos tratados internacionais; e cada uma das decisões foi fundamentada, na recepção dos documentos internacionais de direitos humanos no Brasil, e passa-se a cotejá-las com as posições doutrinárias e jurisprudenciais atuais.

Frente à fundamentação dos tratados internacionais de direitos humanos equivalentes à lei ordinária, enfoca-se uma terceira corrente com o julgamento do Recurso Extraordinário nº 80.004/1997-SE, pelo STF, envolvendo conflitos entre a Lei Uniforme de Genebra e o Decreto nº 427/69, tendo como relator o então Min. Xavier de Albuquerque. A decisão da Corte apontou os tratados com hierarquia de leis federais ordinárias porque:

No julgamento, entendeu-se que poderia haver entre as normas de direito internacional com as normas de direito interno, devendo ser aplicada a máxima lex posteriori derrogat priori, na medida em que inexistia um critério expresso na Constituição, prevalecendo, assim, a última vontade do legislador. (GUERRA; EMERIQUE, 2008, p. 10)

Anota-se que aquela foi uma decisão muito contestada pela doutrina, já que, ao equiparar o tratado internalizado com a lei ordinária, possibilitou-se a sua revogação ou sua modificação pela norma interna comum posterior, criando-se uma situação de insegurança jurídica com possíveis embaraços nas relações internacionais.

A tendência mais recente no Brasil é a de um verdadeiro retrocesso nesta matéria. No recurso extraordinário n. 80.004, decidido em 1977, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que uma lei revoga o tratado anterior. Esta decisão viola também a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969) que não admite o término de tratado por mudança de direito superveniente. (MELLO, 2010, p. 245)

Seguindo, a segunda corrente amparada na teoria da natureza constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos estabeleceu um silogismo entre o conteúdo dos tratados internacionais de direitos humanos, concluindo-se que, pelo critério material, os tratados possuem status constitucional. Nesse diapasão, além da natureza de norma superior, deve-se recordar que o texto constitucional também estabelece, expressamente, como direitos fundamentais os contidos nos tratados internacionais de direitos humanos, tal como expresso no artigo 5º, §2º.

Esse também foi tema tratado pelo STF quando do julgamento do HC nº 87.585-TO, que discutia a possibilidade de aplicação de prisão civil do depositário infiel no Brasil, frente à previsão contida no Pacto de São José da Costa Rica, internalizado pelos poderes constituídos brasileiros. Um destaque foi o voto vencido do Min. Celso de Mello, que assim ponderou:

Após muita reflexão sobre esse tema, e não obstante anteriores julgamentos desta Corte de que participei como Relator (RTJ 174/463-465 – RTJ 179/493-496), inclino-me a acolher essa orientação, que atribui natureza constitucional às convenções internacionais de direitos humanos, reconhecendo, para efeito de outorga dessa especial qualificação jurídica. (BRASIL, 2019)

Do mesmo modo, na ADI nº 903/2-14, que tratou sobre um conflito sobre a lei de transportes nacionais e o Protocolo de Nova York sobre pessoas deficientes, o STF, no voto do Min. Dias Toffoli, assim se manifestou:

A ordem constitucional brasileira, inaugurada em 1988, trouxe desde seus escritos originais a preocupação com a proteção das pessoas portadoras de necessidades especiais, construindo políticas e diretrizes de inserção nas diversas áreas sociais e econômicas da comunidade (trabalho privado, serviço público, previdência e assistência social). Estabeleceu, assim, nos arts. 227, §2º, e 244, a necessidade de se conferir amplo acesso e plena capacidade de locomoção às pessoas com deficiência, no que concerne tanto aos logradouros públicos, quanto aos veículos de transporte coletivo, determinando ao legislador ordinário a edição de diplomas que estabeleçam as formas de construção e modificação desses espaços e desses meios de transporte. (BRASIL, 2019)

Por fim, a teoria que considera que os tratados de direitos humanos têm hierarquia supralegal começou a se solidificar, no âmbito do STF, com o julgamento do HC nº 72.131/1995-RJ. A Corte Constitucional brasileira, ao enfrentar a questão concernente aos efeitos do Pacto de São José da Costa Rica (particularmente do art. 7, VII, que proíbe a prisão civil por dívida, salvo no caso de alimentos), sobre o direito brasileiro, em votação não unânime, situação em que foram vencidos os Ministros Marco Aurélio, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence, consignou:

Parece-me irrecusável, no exame da questão concernente à primazia das normas de direito internacional público sobre a legislação interna ou doméstica do Estado brasileiro, que não cabe atribuir, por efeito do que prescreve o art. 5º, parágrafo 2º, da Carta Política, um inexistente grau hierárquico das convenções internacionais sobre o direito positivo interno vigente no Brasil.

Assim sendo, o julgamento do HC nº 72.131 foi um marco jurídico importante, por dar início ao reconhecimento jurisprudencial de que os tratados internacionais devem possuir hierarquia superior às leis infraconstitucionais, porque não podem ser modificados por elas. Ainda, por ocasião do julgamento do RHC nº 79.785/2000-RJ, pelo STF, envolvendo o alcance interpretativo do princípio do duplo grau de jurisdição, previsto pela Convenção Americana de Direitos Humanos, o Min. Sepúlveda Pertence julgou por:

[…] aceitar a outorga de força supralegal às convenções de direitos humanos, de modo a dar aplicação direta às suas normas – até, se necessário, contra a lei ordinária – sempre que, sem ferir a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela constantes. (BRASIL, 2019)

Como resultado lógico, foi considerado um pilar fundamental para a aceitação judicial da convencionalidade dos tratados ratificados pelo Brasil, no RE nº 466.343/2000-SP, julgado pelo STF, sendo que a posição majoritária da Corte Constitucional reconheceu, de forma definitiva, o status jurídico supralegal daquelas normas. Portanto, de acordo com o julgado, prevaleceu a tendência internacional de se reconhecer os tratados com status jurídico superior aos das leis nacionais. “A tese levantada pelo Min. Sepúlveda Pertence em verdade se aplica em outros países, por exemplo, na Alemanha e França onde os tratados de direitos humanos gozam de uma situação diferenciada” (GUERRA; EMERIQUE, 2008, p. 10).

Essa argumentação possibilita a conclusão de que, atualmente, a jurisprudência do STF afirma que os tratados internacionais têm força supralegal. Fato confirmado no RE nº 466.3427/2000, ação que analisou o impacto da inovação introduzida pelo artigo 5º, §3º, e a necessidade de evolução e jurisprudencial do STF.

Ante o exposto, tem-se que a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos deve ser analisada sob o prisma da referida EC nº 45, que inseriu a previsão de equivalência constitucional através da inserção do §3º ao artigo 5º e assim prevê:

Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Dessa forma, pela posição dominante tanto do STF quanto da doutrina, é que os tratados internacionais de direitos humanos, ratificados antes da EC nº 45, de 2004, possuem hierarquia supralegal, ou seja, estão em status normativo acima das leis, porém subordinados à Constituição.

Contudo, os tratados internacionais de direitos humanos que forem aprovados após a referida emenda, com o rito próprio apontado no texto constitucional, terão força equivalente à de emenda à constituição e, dessa forma, status constitucional. Como exemplo, se pode citar o Decreto nº 6.949/2009, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinada pelo Estado brasileiro em Nova York, 30 de março de 2007.

Apesar da ampla aceitação, o novo modelo introduzido pela EC nº 45 foi criticado pela doutrina jus internacionalista do reconhecido jurista brasileiro Cançado Trindade, que buscou demonstrar os efeitos da limitação do reconhecimento dos tratados internacionais de direitos humanos a um rito congressual muito rígido da seguinte maneira:

Trata-se de um modelo fechado de constitucionalização dos tratados de direitos humanos. No caso brasileiro, é um modelo ainda mais retrógrado, porque pretende, com o novo parágrafo 3º do artigo 5º, condicionar a constitucionalização dos tratados à aprovação por um quórum qualificado do Poder Legislativo. (TRINDADE, 2006, p. 118)

Portanto, hodiernamente, reconhece-se que os tratados internacionais possuem hierarquia supralegal, equivalente, pois, à Constituição, dependendo do rito utilizado para sua internalização, tal como expressamente previsto no texto constitucional.

4 O controle de supralegalidade/ convencionalidade como autolimite à competência legislativa do Estado brasileiro

“Primeiramente, o controle de convencionalidade internacional consiste na atividade de fiscalização dos atos e condutas dos Estados por órgãos compostos por julgadores independentes, de criação de tratados internacionais” (VALENTE, 2016, p. 1), sendo esta também a lição acadêmica de Rothenburg (2013), para quem a tendência do mundo contemporâneo e do Direito Internacional é se afirmar, sendo praticado cada vez mais, e tornando-se uma exigência tão grave quanto o Direito Constitucional, que é buscada uma harmonização nas relações entre os países. Assim, reconhece-se (mais uma vez) o entrelaçamento das normas internas com as internacionais no cotidiano jurídico brasileiro, bem como, devido aos processos de integração e globalização/mundialização, que as normas internacionais estão cada vez mais presentes no ordenamento pátrio.

Este instituto garante controle sobre a eficácia das legislações internacionais e permite dirimir conflitos entre direito interno e normas de direito internacional e poderá ser efetuado pela própria Corte Interamericana de Direitos Humanos ou pelos tribunais internos dos países que fazem parte de tal Convenção. (GUERRA, 2017, p. 6)

Ressalta-se, conforme Marinoni e Mazzuoli (2013), que os tratados internacionais, quando qualificados como direito supralegal, são postos em grau de hierarquia normativa superior ao da legislação infraconstitucional e inferior ao da Constituição. Sendo uma consequência, é por causa dessa hierarquia que se evita o conflito entre as suas previsões jurídicas, mantendo-se a organicidade do sistema vigente.

Nesse diapasão, a norma constitucional não pode ser afrontada pelas previsões supralegais e infraconstitucionais, da mesma forma que as normas supralegais não devem ser aviltadas pelas disposições infraconstitucionais. Em termos constitucionais, não há dúvidas de que o controle de constitucionalidade impede a validade e aplicabilidade de uma norma inconstitucional, é uma realidade. No Brasil, trata-se de um tema jurídico muito amplo e aceito pela doutrina e pela jurisprudência nacional, inclusive, com a possibilidade de decretação de inconstitucionalidade de normas pelos Tribunais de Contas, tal como norteia a Súmula nº 3473 do STF e a sua jurisprudência majoritária.4


3 O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público.

4 “[…] a atribuição de poderes explícitos, ao Tribunal de Contas, tais como enunciados no art. 71 da Lei Fundamental da República, supõe que se lhe reconheça, ainda que por implicitude, a titularidade de meios destinados a viabilizar a adoção de medidas cautelares vocacionadas a conferir real efetividade às suas deliberações finais, permitindo, assim, que se neutralizem situações de lesividade, atual ou iminente, ao erário público. Impende considerar, no ponto, em ordem a legitimar esse entendimento, a formulação que se fez em torno dos poderes implícitos, cuja doutrina, construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no célebre caso McCulloch v. Maryland (1819), enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos fins que lhe foram atribuídos. […] É por isso que entendo revestir-se de integral legitimidade constitucional a atribuição de índole cautelar, que, reconhecida com apoio na teoria dos poderes implícitos, permite, ao TCU, adotar as medidas necessárias ao fiel cumprimento de suas funções institucionais e ao pleno exercício das competências que lhe foram outorgadas, diretamente, pela própria CR” (BRASIL, 2019c, p. 134).


Portanto, um enunciado jurídico infraconstitucional ou supralegal contrário à Constituição não tem validade e deve ser retirado do ordenamento jurídico por meio do controle de constitucionalidade preventivo ou repressivo, bem como, ganhou força, atualmente, outra forma de controle da produção e de aplicação de normas jurídicas no Brasil, chamada de “controle de convencionalidade ou de supralegalidade”. Por meio dele, reconhece-se a hierarquia superior dos tratados internacionais ratificados, frente à legislação infraconstitucional,

O controle de convencionalidade constitui-se de uma espécie de controle de constitucionalidade que adota como parâmetro os tratados internacionais. Esse instituto é construído tomando-se por referência o controle de constitucionalidade e sua teoria, razão pela qual deverá ser estudado em conjunto com o controle de convencionalidade. (RUSSOWSKY, 2012, p. 62)

Uma nota doutrinária singular é que a efetivação do controle de convencionalidade só foi possível, na América Latina, a partir do reconhecimento da importância da democracia para os Estados e, consequentemente, com o processo de redemocratização a partir da década de 1980.

No caso latino-americano, o processo de democratização na região, deflagrado na década de 80, é que propiciou a incorporação de importantes instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos pelos Estados latino-americanos. (PIOVESAN, 2012, p. 83)

Especificamente no Brasil, o controle de convencionalidade se baseou em dois pontos principais: o primeiro foi a jurisprudência do STF, que reconheceu sua hierarquia tal como já demonstrado anteriormente, bem como houve a superação do posicionamento da Corte Excelsa brasileira, para a qual, inicialmente, os tratados internacionais tinham força normativa de leis federais ordinárias. A Corte Constitucional reconheceu, a partir do RE nº 466.343/2000-SP, o status jurídico daqueles tratados como norma supralegal. O segundo ponto de afirmação do controle de convencionalidade vem sendo a sua reiterada aplicação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Como exemplo, a CIDH, reconheceu a sua aplicabilidade, no caso “Tibi versus Equador”, assim julgado:

Dicho de otra manera, si los tribunales constitucionales controlan la ‘constitucionalidad’, el tribunal internacional de derechos humanos resuelve acerca de la ‘convencionalidad’ de esos actos. A través del control de constitucionalidad, los órganos internos procuran conformar la actividad del poder público –y, eventualmente, de otros agentes sociales– al orden que entraña el Estado de Derecho en una sociedad democrática. El tribunal interamericano, por su parte, pretende conformar esa actividad al orden internacional acogido en la convención fundadora de la jurisdicción interamericana y aceptado por los Estados partes en ejercicio de su soberanía. (CIDH, 2017, p. 25)

Mais um leading case da Corte Interamericana a ser referenciado, devido à sua relevância para o controle de convencionalidade latino-americano, é o julgado Almonacid Arellano y Otros versus Chile da CIDH, onde se começou a analisar a validade jurídica das leis de anistia, autoimpostas pelos Estados sul-americanos no momento de transição dos regimes autoritários, no final da década de 1970. Sendo que esse caso também foi singular no sentido de impor obrigações aos Estados pelo crime de desaparecimento forçado, utilizado como instrumento de coerção, durante os regimes de exceção, experimentados em vários países da América Latina.

Cuando un Estado ha ratificado un tratado internacional como la Convención Americana, sus jueces, como parte del aparato del Estado, también están sometidos a ella, lo que les obliga a velar porque los efectos de las disposiciones de la Convención no se vean mermadas por la aplicación de leyes contrarias a su objeto y fin, y que desde un inicio carecen de efectos jurídicos. En otras palabras, el Poder Judicial debe ejercer una especie de “control de convencionalidad” entre las normas jurídicas internas que aplican en los casos concretos y la Convención Americana sobre Derechos Humanos. (CIDH, 2017. p. 53)

Pelos julgados apresentados percebe-se a construção jurisprudencial de um dever do Estado de efetivar os tratados internacionais dos quais fizer parte, especialmente os de direitos humanos, protegendo-os contra ações legislativas contrárias às previsões acordadas internacionalmente. Ocorrendo o complemento desse dever estatal, há o reconhecimento de que o juiz, em suas atividades, é guardião do direito nacional e do internacional, devendo zelar pelo fiel cumprimento de ambas as normas, na solução de casos concretos, seja no âmbito constitucional, infraconstitucional ou supralegal.

Assim, entende-se que, atualmente, deverão ser realizados dois juízos de validade sobre a norma jurídica para a sua aplicação, inclusive, pelos Tribunais de Contas: primeiro, se o comando jurídico está em consonância com a Constituição, e, segundo, se o objeto de análise contraria alguma disposição prevista em tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Se o enunciado jurídico passar por esses dois controles, pode ser efetivamente aplicado à vida brasileira.

Verifica-se que, paulatinamente, os tribunais brasileiros estão reconhecendo ao pouco o controle de convencionalidade e concretizando a superioridade hierárquica dos tratados internacionais ratificados sobre a legislação infraconstitucional. Um dos exemplos possíveis ocorreu no HC nº 2012.00.2.029280-9, julgado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), sendo que a Corte Distrital assim julgou, naquele caso criminal:

Se a impetrante alega a inconstitucionalidade da agravante por reincidência em face do disposto no art. 8, IV, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que possui status de supralegalidade, porque anterior à EC 45/2004 e não submetido ao procedimento previsto no art. 5, §3, da Constituição Federal, não há que se falar em controle de constitucionalidade da aludida norma, mas controle de convencionalidade. (TJDFT, 2019, p. 2)

Portanto, por simetria e ausência de impedimento constitucional ou legal, os Tribunais de Contas podem aplicar o controle de convencionalidade em seus julgamentos, concretizando esse filtro de validade das normas jurídicas pelos julgadores brasileiros.

Especificamente pelas particularidades das Cortes de Contas, sobretudo amparadas no artigo 71, II,5 da Norma Ápice, que atribui competências jurisdicionais para acompanhar a utilização de “dinheiros, bens e valores públicos da administração (pública) direta e indireta” (BRASIL, 2019, p. 2), dois blocos de tratados podem fazer parte de seu cotidiano. Primeiro, os acordos internacionais sobre combate à corrupção, tais como: a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, recepcionada pelo Decreto nº 5.687/2006, e a Convenção Interamericana contra a Corrupção, internalizada pelo Decreto nº 4.410/2002; e, em segundo plano, os acordos internacionais sobre tributação ou, ainda, bitributação,6 que foram estatuídos pela República brasileira, tais como com a África do Sul (Decreto nº 9.559/2018), Argentina (Decreto nº 9.482/2018), Canadá (Decreto nº 92.318/1986 ), Chile (Decreto nº 4.852/2003), China (Decreto nº 762/1993), Espanha (Decreto nº 76.975/1976), França (Decreto nº 70.506/1972), Itália (Decreto nº 5.576/2005), Japão (Decreto nº 81.194/1978), México (Portaria MF nº 38/2007), Rússia (Decreto nº 9.115/2017), Turquia (Decreto nº 8.140/2013), etc.


5 Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: […] II – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público; […].


Esses dois blocos de tratados foram escolhidos porque vinculam a atuação da Administração Pública, devido à utilização ou renúncia de recursos públicos, incidindo, inclusive sobre a efetivação dos direitos e garantias fundamentais e parametrizando a qualidade das políticas públicas, que devem ser estabelecidas, e, logo, estarão no plano de autuação consultiva ou mesmo jurisdicional dos Tribunais de Contas.

Portanto, os tratados ratificados pela República brasileira são um parâmetro para a produção normativa, federal, estadual e municipal, autolimitando a atuação do poder legislativo e criando a possibilidade e o dever de atuação de órgãos especializados, tal como são as Corte de Contas, que também devem zelar pela hierarquia normativa no Brasil.

De maneira simples, seja em suas funções consultivas ou jurisdicionais os Tribunais de Contas podem e devem aplicar o controle de convencionalidade, já que toda a produção normativa brasileira está vinculada a dois grandes filtros hermenêuticos: o controle de constitucionalidade e os parâmetros da supralegalidade, sem os quais uma lei não é válida.

Seguindo, o controle de convencionalidade atualmente, no Brasil, somente pode ser manejado em sua forma difusa, ou seja, caso a caso, produzindo efeito interpartes. Frise-se, que não é possível a sua utilização em sede de controle abstrato das normas, já que não há previsão legal ou constitucional que a balize, mesmo que a doutrina de Mazzuolli (2016) tenha se posicionado favoravelmente nesse sentido com ótimos argumentos.


6 Infere-se que o número de acordos bilaterais se apresenta como um ponto importante na agenda da política internacional brasileira, no ano de 2019, como demonstra a acréscimo dos protocolos de intenção que foram firmados pelo corpo diplomático no ano de 2019, tal como demonstram os dados do MIDIC (Acordos dos quais o Brasil é Parte. Disponível em: http://www.mdic.gov.br/comercio-exterior/negociacoesinternacionais/796-negociacoes-internacionais-2).


Pelo exposto, pode-se marcar a posição de que, tanto ao ratificar um tratado internacional, quanto ao aplicar o controle de convencionalidade, o Estado brasileiro, inclusive os Tribunais de Contas, impõe uma autolimitação normativa, já que se cerceia, quanto à sua competência legislativa, sobre determinado assunto. Nesse diapasão, a soberania estatal é autolimitada por uma disposição do próprio Estado, em sua decisão de participar de determinado acordo entre sujeitos de Direito Internacional.

O controle de convencionalidade não impede que o Estado exerça a sua soberania e se retire de determinado tratado pelo procedimento formal da denúncia, por exemplo. Pelo bem da clareza, o que se busca com esse controle é que se efetivem as determinações do Estado, através do fiel cumprimento dos tratados internacionais ratificados. Evita-se que forças legislativas ordinárias tenham poder erosivo sobre os tratados, especialmente os que versam sobre direitos humanos.

O pressuposto básico para a existência do controle de convencionalidade é a hierarquia diferenciada dos instrumentos internacionais de direitos humanos em relação à legalidade ordinária. A isto se soma o argumento de que, quando um Estado ratifica um tratado, todos os órgãos do poder estatal a ele se vinculam, comprometendo-se a cumpri-lo de boa-fé. (PIOVESAN, 2012, p. 83)

Pelo bem da clareza acadêmica, a soberania estatal é exercida quando da opção por determinado acordo internacional, o que, consequentemente, como já dito, vinculará as disposições legislativas e administrativas do Estado, enquanto ele fizer parte do tratado ratificado, autolimitando suas ações legislativas, até mesmo nos âmbitos estadual e municipal, que pode ser auxiliado pelas Cortes de Contas.

Entende-se, ainda, que se deve utilizar a terminologia “autolimitação” quanto ao controle de convencionalidade, tendo em vista o exercício da soberania estatal ao se participar de determinado tratado. Essa autolimitação deve ser aplicada às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, já que também há manifestação estatal para adesão e subordinação àquele órgão internacional. E esta afirmação leva à conclusão de que o controle de convencionalidade é uma forma de se efetivar juridicamente as disposições internacionais ratificadas por determinado Estado, com aceitação de sua hierarquia supralegal frente às leis infraconstitucionais.

E dessa maneira se percebe que a produção legislativa brasileira, seja nas instâncias federais, estaduais e municipais, não pode aviltar um tratado celebrado. Tampouco a Administração Pública pode adotar atos contrários a acordo firmado. Há uma autolimitação da competência legislativa, que passa a ser cerceada por um duplo controle: constitucional e supralegal, que também pode ser julgado pelos Tribunais de Contas.

5 Considerações finais

O contexto atual marcado por uma aproximação sem precedentes dos sujeitos de direito internacional impõe o desafio de aplicação de normas jurídicas em um ambiente em metamorfose, tal como lecionou Ulrich Beck (2018). Tal constatação ainda se alinha com a necessidade de se efetivar o paradigma do Estado Democrático de Direito, que, por causas das mudanças que ocorrem no cotidiano, por pressões estatais e da esfera civil, ainda precisa concretizar os direitos fundamentais e materializar os instrumentos de controle da Administração Pública.

Nessa esteira, foi demonstrado por este ensaio acadêmico, embasado no método hipotético-dedutivo e nas técnicas de revisão da bibliografia e estudo de caso, que os Tribunais de Contas brasileiros podem aplicar o controle de convencionalidade em suas decisões.

Para tanto, foi necessário distinguir que os tratados internacionais internalizados pela República Brasileira, por causa do previsto no artigo 5º, III, da Constituição Cidadã, terão equivalência com os direitos fundamentais ou estarão dotados de supralegalidade.

De maneira sintética, foi apontado que o controle de convencionalidade é filtro jurídico que se estabelece a partir da hierarquia dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, que estão subordinados à Constituição, mas vinculam a produção e aplicação das normas infraconstitucionais.

Como resultado lógico os magistrados brasileiros devem ao mesmo tempo aplicar o controle de constitucionalidade e de convencionalidade. Assim, no âmbito de suas competências estabelecidas a partir das previsões constitucionais especificas, os Tribunais de Contas, da União, Estados ou dos Municípios, devem aplicar esses parâmetros em suas decisões, principalmente frente aos acordos internacionais que versam sobre a relação da Administração Pública e os direitos essenciais das pessoas, tais como a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, internalizada no Brasil pelo Decreto nº 5.687/2006; a Convenção Interamericana contra a Corrupção, amparada pelo Decreto nº 4.410/2002, bem como os diversos acordos internacionais sobre tributação ou bitributação, tal como apresentados.

Por fim, o resultado é que os Tribunais de Contas, no cumprimento de sua missão constitucional de proteger a sociedade, os direitos, deveres e garantias fundamentais e também o erário podem aplicar o controle de convencionalidade no exercício de suas funções.



The possibility of application of conventionality control by the Brazilian Accounts Courts

Abstract: In the current constitutional paradigm of the Democratic Rule of Law, there is a clear self-limitation of state action, which must faithfully comply with the laws, allowing even the creation and performance of specialized agencies to control the Public Administration, even external ones such as the Courts of Justice. Accounts. It is also recognized that in Brazilian constitutional history, especially in the 1988 Constitution, there was recognition of the importance of international treaties, which currently have the status of supralegal or conventional norms. In summary, in current doctrine and jurisprudence, it is recognized that treaties, which were not received in accordance with the specific rite foreseen by the constitutional text, with CE no. 45/2002, are subject to the Apex Standard and are binding on the normative validity of the other Brazilian normative species. Thus, there is a state duty to apply conventionality control, including by the Courts of Auditors, whether at the federal, state or municipal levels.

Keywords: International treaties. Conventionality control. Courts of Auditors.



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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
DANTAS, Bruno; GONÇALVES, André Luiz de Matos; SANTOS, Júlio Edstron S. A possibilidade de aplicação do controle de convencionalidade pelos Tribunais de Contas brasileiros. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 19, n. 223,
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Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 19, n. 223, p. 27-41, setembro 2019

André Luiz de Matos Gonçalves
Bruno Dantas
Júlio Edstron S. Santos