Sumário:
- Introdução
- Funções e tarefas do Estado e das demais entidades públicas
- Relevância da distinção das funções e atos do Estado e das demais entidades públicas
- Critérios de distinção das funções e atos do Estado e das demais entidades públicas
- Conclusão
Bibliografia
Jurisprudência
Anexos I e II.
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Introdução.
- Nota preliminar
O presente estudo é uma homenagem a RUI PENA, meu Professor de Direito das Obrigações na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e de quem, mais tarde, fui assistente de Direito Administrativo, para além da colaboração em iniciativas académicas e profissionais.
Em todos os momentos vi em RUI PENA um exemplo de sólido caráter, profissionalismo com princípios, preocupação pelo enquadramento teórico e científico da sua atividade académica e profissional e dedicação à causa pública.
Quando colaborei com RUI PENA na docência de Direito Administrativo, havia uma matéria que preparávamos com especial interesse, dada a sua importância estrutural para os nossos alunos: a delimitação da função administrativa em relação às demais funções do Estado e outras entidades públicas.
De certo modo, este estudo de homenagem corresponde, na essência, ao conteúdo das nossas aulas sobre a matéria, à luz da ordem jurídica portuguesa atual, excluindo, porém, a não ser incidentalmente, as funções e atos da União Europeia, bem como os atos de Direito Internacional, que fazem parte integrante do Direito português.
Neste domínio, existe um vasto conjunto de obras que foram sendo elaboradas, de que destacamos a de JORGE MIRANDA, Funções, órgãos e atos do Estado, Ed. Dislivro, Lisboa, 1990, que constitui uma referência imprescindível.
Por outro lado, também a jurisprudência dos tribunais sobre a matéria é de uma grande riqueza para o esclarecimento das questões que a mesma suscita.
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Funções e tarefas do Estado e das demais entidades públicas
No presente estudo, trataremos essencialmente de identificar e distinguir, no ordenamento jurídico em vigor, as várias funções do Estado e demais entidades públicas, no sentido de atividades que aos seus órgãos cabe exercer para prosseguir o interesse público, as necessidades públicas ou, dito de outro modo, as atribuições que lhes estão confiadas.
Estas atribuições também podem ser designadas por tarefas ou incumbências, para utilizar a terminologia da Constituição da República Portuguesa (CRP). As atividades ou funções destinam-se justamente à sua concretização, através da prática de atos (políticos, legislativos, regulamentares…) ou da celebração de contratos…
Essas atividades ou funções são indicadas e autonomizadas na Constituição, assumindo natureza e conteúdo diversos, com as consequências inerentes.
Fundamentando o que acabamos de referir, os artºs. 9.º e 81.º da CRP dispõem sobre as tarefas ou incumbências fundamentais do Estado, de que destacamos as seguintes: garantir a independência nacional, garantir os direitos e liberdades fundamentais, promover o bem-estar e a qualidade de vida, proteger e valorizar o património cultural, defender a natureza e o ambiente, assegurar o ensino e a valorização permanente, promover o desenvolvimento harmonioso do território nacional, promover a igualdade entre homens e mulheres e assegurar o funcionamento eficiente do mercado.
Para prosseguir estas finalidades (atribuições, incumbências ou tarefas), a própria Constituição prevê as várias atividades ou funções de natureza pública que devem ser exercidas, nomeadamente, nas disposições dos artºs. 3.º (validade das leis e dos demais atos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas), 6.º (Estado unitário), 23.º (queixas ao Provedor de Justiça por ações ou omissões dos poderes públicos), 48.º (participação dos cidadãos na vida pública), 52.º (direito de petição e direito de ação popular relativamente a atos do Estado e demais entidades públicas), 110.º (órgãos de soberania e sua competência), 112.º (atos normativos – atos legislativos e atos regulamentares), 119.º (publicidade dos atos – com especificação dos vários tipos de atos) [1], 133.º a 140.º (competência do Presidente da República), 161.º a 170.º (competência da Assembleia da República), 197.º (competência política do Governo), 198.º (competência legislativa do Governo), 199.º (competência administrativa do Governo), 202.º e segs. (função judicial/jurisdicional), 225.º a 234.º (competência política, legislativa e administrativa dos órgãos das Regiões Autónomas), 235.º a 262.º (competência administrativa dos órgãos do poder local).
Esta enunciação permite-nos desde já extrair os seguintes elementos:
- Por um lado, a existência de várias funções de natureza pública (política, legislativa, administrativa, financeira, jurisdicional e de controlo);
- Por outro lado, há órgãos aos quais a Constituição confere mais do que uma função, como é o caso do Governo, que dispõe de competências política, legislativa e administrativa;
- Por último, o Estado é referido nas suas várias aceções (Estado-Comunidade, Estado-ente de Direito Internacional e Estado-Pessoa coletiva pública de Direito interno), o que deveremos ter em atenção na distinção das respetivas funções.
Deste modo, a matéria em apreço é da maior complexidade e abrangência, envolvendo, em especial, a origem e a evolução do Estado, os tipos de Estado, os sistemas e os regimes políticos, os princípios enformadores de cada Estado, em particular, o princípio da separação e interdependência de poderes (art.ºs. 2.º e 111.º da CRP)[2], bem como as formas de organização do Estado (unitário, federal…; centralizado, descentralizado;…).
Atendendo às naturais limitações deste estudo, cingir-nos-emos apenas ao enquadramento da matéria no ordenamento jurídico português atual.
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Relevância da distinção das funções e atos do Estado e das demais entidades públicas
Cabe agora perguntar qual o interesse e a relevância da distinção das funções e atos do Estado e das demais entidades públicas.
Naturalmente, é sempre inegável o interesse teórico de qualquer distinção, a qual, no caso em apreço, também servirá de apoio indispensável na interpretação da lei, na integração de lacunas e no eventual apuramento de meios de garantia.
Em concreto, esta distinção é da maior relevância e utilidade nos termos e pelos fundamentos seguintes:
- Em primeiro lugar, como já sublinhámos, há órgãos aos quais a Constituição e a Lei conferem várias funções.
Assim, por exemplo, o Governo pode atuar como órgão político, legislativo e administrativo.
Como poderemos saber, então, se o Governo está a agir como órgão político, órgão legislativo ou órgão administrativo?
A resposta só pode ser dada através de critérios que delimitem as funções respetivas.
Evidentemente, não pode aceitar-se que sejam os próprios órgãos a definir ou especificar a qualidade em que agem, o que, a admitir-se, poderia até levar a situações fraudulentas. A este respeito, refira-se os casos, anteriores à revisão Constitucional de 1982, em que o Governo conferiu a atos administrativos a forma de decreto-lei para impedir a sua impugnação contenciosa.
É através de vários critérios que se apura a natureza dos atos praticados.
- Em segundo lugar, a distinção é imprescindível para efeitos de impugnação contenciosa e, em geral, de controlo pelos tribunais, para além da efetivação de outras garantias, v.g., junto do Provedor de Justiça.
Com efeito, a título exemplificativo, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) dispõe, no seu artigo 4.º (sob a epígrafe “Âmbito da jurisdição”), que está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de «atos praticados no exercício da função política e legislativa» [n.º 3, al. a)], exclusão que emerge do princípio da separação de poderes.
Sendo assim, torna-se necessário definir ato praticado no exercício da função política (ou ato político) e ato praticado no exercício da função legislativa (ou ato legislativo).
Neste estudo, apresentamos um conjunto de acórdãos dos tribunais administrativos que ilustram as questões que têm sido suscitadas neste domínio.
- Por último, a distinção em causa é essencial para efeitos de determinação de responsabilidades (política, criminal, civil, disciplinar e financeira)[3].
A Constituição da República Portuguesa contém várias normas neste domínio, de que destacamos a consagração, no seu art.º 22.º, da responsabilidade civil do Estado e das demais entidades públicas, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.
Por outro lado, no art.º 117.º, dispõe-se que os titulares de cargos políticos respondem política, civil e criminalmente pelas ações e omissões que pratiquem no exercício das suas funções, merecendo ainda referência as disposições constitucionais dos artºs. 130.º (Presidente da República), 157.º e 160.º (Deputados), 190.º, 191.º e 196.º (Governo), 214.º (Responsabilidade financeira), 216.º e 217.º (Juízes) e 271.º (Funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas).
Este enquadramento constitucional da responsabilidade deve ser complementado com os diplomas legislativos específicos de cada tipo de responsabilidade, em especial, o Código Penal, a Lei n.º 34/87, de 16 de julho (crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos), a Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro (regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas), a Lei n.º 98/97, de 26 de agosto (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas) e, quanto à responsabilidade disciplinar, os respetivos estatutos disciplinares.
Concluímos, assim, ser necessário distinguir com a maior precisão possível as funções e os atos do Estado e demais entidades públicas. Não é uma tarefa fácil, sobretudo em situações de fronteira.
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Critérios de distinção das funções e atos do Estado e demais entidades públicas
- Nota preliminar
Tendo em atenção o que já expusemos, afigura-se-nos deverem ser autonomizadas as seguintes funções do Estado e demais entidades públicas:
- Função política stricto sensu, traduzida na prática de atos políticos;
- Função (político-)legislativa, consubstanciada na prática de atos legislativos;
- Função administrativa e de administração em geral, a que correspondem atos de administração (regulamentos, atos administrativos, contratos públicos…);
- Função (administrativa e) financeira, traduzida na prática de atos financeiros;
- Função jurisdicional, consubstanciada em atos de natureza jurisdicional; e
- Função de controlo, jurisdicional e não jurisdicional, a que podem corresponder atos de natureza jurisdicional ou atos de natureza técnica.
Como distinguir então estas funções?
Para este efeito propomos quatro critérios cumulativos:
- orgânico;
- formal;
- material; e do
- grau de vinculação à ordem jurídica.
- Critério orgânico
O critério orgânico incide sobre a natureza dos órgãos que exercem as funções em causa, entendendo-se por órgão um centro institucionalizado de poderes ou de competência (cfr. tb. art.º 20.º do CPA)
Segundo este critério, dir-se-ia que um ato seria político quando praticado por um órgão político; legislativo, por um órgão legislativo; de natureza administrativa, por um órgão administrativo; financeiro, por um órgão financeiro; jurisdicional, por um órgão jurisdicional; e de controlo, por um órgão de controlo.
Trata-se de um critério válido, sem dúvida, mas insuficiente para a distinção das várias funções.
Com efeito, como já assinalámos, há órgãos que exercem várias funções, nos termos da Constituição e da Lei. Assim, por exemplo, o Presidente da República é um órgão essencialmente político (cfr., v.g. artºs. 120.º e 133.º e segs. da CRP), mas também pode, acessoriamente, praticar atos materialmente administrativos; a Assembleia da República é um órgão político (cfr., v.g. art.º 163.º da CRP), um órgão legislativo (cfr., v.g. artºs. 164.º e 165.º da CRP), um órgão de controlo (cfr. art.º 162.º da CRP) e, acessoriamente, pode praticar atos de natureza administrativa; o Governo é também um órgão político (cfr. art.º 197.º da CRP), legislativo (cfr. art.º 198.º da CRP), administrativo, financeiro e de controlo não jurisdicional (cfr. art.º 199.º da CRP); os tribunais são essencialmente órgãos da função jurisdicional (cfr. art.º 202.º e segs. da CRP), mas, acessoriamente, podem praticar atos de natureza administrativa; e os órgãos que exercem a função de controlo podem ser de natureza política (ex.: Assembleia da República – cfr. art.º 162.º da CRP), administrativa (ex.: o Governo, através das inspeções-gerais) ou jurisdicional (ex.: os tribunais).
De todo o modo, a natureza dos órgãos pode dar-nos alguma luz, nomeadamente quando comparamos os órgãos jurisdicionais (os tribunais) e os órgãos administrativos. É que os tribunais são órgãos independentes, apenas estando sujeitos à lei (art.º 203.º da CRP), encontrando-se numa posição de distanciamento, de equidistância, de imparcialidade, de desinteresse e com o estatuto de irresponsabilidade relativamente ao objeto da sua atividade de dizer direito.
O mesmo não sucede com os órgãos administrativos, os quais são parciais no que respeita à prossecução do interesse público, agindo com iniciativa e não com passividade. Acresce que a atividade administrativa está sujeita ao controlo jurisdicional exercido pelos tribunais.
Concluímos, assim, que este critério, embora útil e necessário, não é suficiente. Teremos de juntar-lhe outros critérios. Vejamos o critério formal.
- Critério formal
Será a forma dos atos um critério decisivo para distinguir as funções respetivas?
Por exemplo, um ato com a forma de lei, de decreto-lei ou de decreto-legislativo regional será sempre um ato legislativo (cfr. art.º 112.º, n.º 1, da CRP)?
E um ato com a forma de decreto-regulamentar ou de portaria será sempre um regulamento?
A resposta é negativa. Na verdade, a Constituição assim o determina, quando prevê, no art.º 268.º, n.º 4, que são impugnáveis contenciosamente quaisquer atos administrativos «independentemente da sua forma», ou seja, mesmo que tenham a forma inadequada de lei, de decreto-lei, de decreto-legislativo regional, de decreto regulamentar ou qualquer outra forma de regulamento.
Esta alteração constitucional de 1982 veio justamente impedir que a forma dada por um órgão aos atos da sua autoria pudesse transformar a sua natureza[4].
Por outro lado, este critério também não é decisivo pelo facto de haver formas de atos que não são exclusivas. É o caso da “resolução do conselho de ministros” que pode ser um ato político (por exemplo, quando se determina luto nacional), ato administrativo (quando, por exemplo, se nomeie os membros de um conselho de administração) ou um regulamento (a título exemplificativo, a norma que preveja que todos os serviços públicos do Estado devem dispor de um endereço eletrónico para receber as solicitações dos cidadãos).
Acresce, por último, que há vários tipos de atos em que a lei não exige qualquer forma especial, para além da simples forma escrita; ou em que se emprega a forma simples de despacho.
Assim, muito embora o critério formal não seja de desprezar, não é de forma alguma determinante. É um critério auxiliar – que deve merecer atenção especial quanto à observância da forma devida –, a juntar aos restantes critérios.
Analisemos agora os critérios material e do grau de vinculação à ordem jurídica, os quais tratamos conjuntamente, dada a sua ligação intrínseca.
- Critérios material e do grau de vinculação à ordem jurídica
O critério material ajudar-nos-á certamente a clarificar um pouco mais a distinção que pretendemos, uma vez que incide sobre o conteúdo, o objeto e a substância dos atos e das respetivas funções. Trata-se, como referimos, de um critério intrinsecamente ligado ao critério do grau de vinculação à ordem jurídica.
Como identificar as várias funções e os respetivos atos segundo estes critérios?
- A função política stricto sensu
Em primeiro lugar, cabe precisar, tanto quanto possível, o que se entende por política, assim permitindo delimitar a função ou atividade política.
Em certo sentido, porventura mais rigoroso, a política (politics) tem determinantes, ideológicas ou doutrinárias, e corresponde a uma relação entre fins e meios sociais, alterada pelo exercício do poder.
Mas, noutro sentido, política (policy, na expressão inglesa) tem um significado mais neutro, exprimindo uma atividade predominantemente racional e, em certa medida, “técnica”, traduzida na formulação de objetivos (que já antes foram “politicamente” escolhidos: em sede de política, no primeiro sentido), de determinada natureza, na sua hierarquização segundo prioridades “dadas”, na escolha racionalizada dos meios mais adequados à produção dos efeitos pretendidos.
Neste sentido, a política como atividade racional, dominada por objetivos pré-selecionados por uma vontade política e servida por uma vontade executiva, depende do poder ou dos seus instrumentos. É, no essencial, técnica, administração ou gestão – não desfruta do poder ou do seu exercício em escolhas fundamentais[5].
Ou seja, neste segundo sentido de política, trata-se de uma atividade secundária, mais limitada, nomeadamente pelas opções e valores fundamentais definidos politicamente (no primeiro sentido de política).
A função política stricto sensu corresponde a este primeiro sentido (politics), traduzindo-se em atos políticos sem natureza normativa, tendo como conteúdo a definição de valores, opções ou linhas fundamentais da Comunidade (critério material), de uma forma relativamente livre, embora com subordinação direta à Constituição ou a atos legislativos estruturantes v.g. os Estatutos das Regiões Autónomas (critério do grau de vinculação à ordem jurídica). São, pois, atos primários.
Sublinhamos que os atos políticos stricto sensu não têm natureza normativa, a qual é própria dos atos (político-)legislativos (e também dos regulamentos, que são atos da função administrativa).
Vejamos alguns exemplos de atos políticos segundo estes critérios:
No que respeita ao Presidente da República, órgão essencialmente político, são atos políticos, por exemplo, a dissolução da Assembleia da República, a nomeação do Primeiro Ministro, a promulgação e o veto de diplomas legais, o indulto e a comutação de penas, a ratificação de tratados internacionais, a declaração de guerra e a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência (cfr. artºs. 133.º e segs. da CRP).
A Assembleia da República, órgão político e político-legislativo, pratica atos políticos stricto sensu, por exemplo, quando autoriza o Presidente da República a declarar a guerra ou a fazer a paz (art.º 161.º, al. m), da CRP) ou dá assentimento à ausência do Presidente da República do território nacional (art.º 163.º, al. b), da CRP) ou ainda quando vota moções de confiança e de censura ao Governo (art.º 163.º, al. e), da CRP.
Em relação ao Governo, que, como vimos, pode atuar como órgão político, legislativo e administrativo, são exemplos de atos políticos stricto sensu, a referenda de atos do Presidente da República, as propostas ao Presidente da República referentes à declaração de guerra ou à feitura da paz e o programa do Governo (cfr. art.º 197.º da CRP).
Pela sua natureza, estes atos estão excluídos do controlo jurisdicional, designadamente, da jurisdição administrativa (art.º 4.º, n.º 3, al. a), do ETAF), sendo rica a jurisprudência dos tribunais administrativos neste domínio, que indicamos no final a título exemplificativo.
- A função (político-)legislativa
A função legislativa tem também natureza política, distinguindo-se da função política stricto sensu por se traduzir em normas jurídicas, em atos normativos – leis, decretos-leis e decretos-legislativos regionais (cfr. art.º 112.º da CRP).
A função legislativa é a atividade dos órgãos legislativos que, de uma forma primária e relativamente livre, traduz em normas opções e valores fundamentais da Comunidade (critério material), como é o caso, por exemplo, da interrupção voluntária da gravidez, do casamento entre pessoas do mesmo sexo, da adoção por casais homossexuais, para apenas citar temas que suscitam envolvimentos sociais generalizados – cfr. a este respeito, os artºs. 164.º e 165.º da CRP (competência legislativa da Assembleia da República, art.º 199.º da CRP (competência legislativa do Governo) e artºs. 227.º e 232.º também da CRP (competência legislativa das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas).
São atos primários, relativamente livres, como os atos políticos strico sensu, mas de natureza normativa, distinguindo-se de outros atos normativos, os regulamentos, uma vez que estes são atos secundários, da função administrativa, subordinados, em especial, ao princípio da legalidade.
Daqui decorre que os atos legislativos estão excluídos da jurisdição administrativa, ao contrário do que sucede com os regulamentos (cfr. art.º 4.º do ETAF).
- A função administrativa e de administração em geral
A função ou atividade administrativa traduz-se na prática de atos (regulamentos, atos administrativos e contratos administrativos), no exercício de poderes públicos, visando a satisfação de necessidades públicas, de acordo com a ordem jurídica.
É, pois, uma atividade secundária, subordinada ao ordenamento jurídico, devendo também corresponder às opções e definições políticas traçadas pelos órgãos políticos.
Por natureza, esta atividade deve ser exercida com iniciativa, ou seja, os órgãos administrativos devem ir ao encontro da satisfação das necessidades públicas e satisfazê-las de acordo com a ordem jurídica, ponderando os interesses a proteger e as consequências das suas decisões, pelas quais são responsáveis.
Nestes aspetos, a função administrativa distingue-se da função jurisdicional, a qual visa aplicar o Direito, segundo o Direito. Todavia, as funções administrativa e jurisdicional têm um ponto em comum: são secundárias, no sentido de que estão subordinadas à Ordem Jurídica.
De uma forma mais ampla, deve referir-se a função de administração ou gestão pública, para abranger outros atos de administração pública (para além dos atos de autoridade), em especial, os atos e contratos das entidades públicas regidos pelo Direito Privado, em que estas entidades não agem no exercício de poderes públicos, embora tenham limitações públicas (cfr. art.º 2.º da CPA).
A distinção entre atos de administração e atos políticos nem sempre é clara, como referimos, sobretudo quando o órgão que atua é um órgão político e administrativo, como é o caso do Governo, e ainda naquelas situações em que os órgãos administrativos agem no exercício de poderes discricionários, nos termos da lei.
Assim, por exemplo, quando o Governo determina o encerramento de uma escola ou de um centro de saúde, estamos perante atos políticos ou atos administrativos?
E quando o governo resolve construir uma ponte ou um aeroporto?
Em todos estes casos estamos perante atos de administração. Trata-se de satisfazer em concreto as necessidades públicas correspondentes, de acordo com a ordem jurídica (policy, na terminologia inglesa).
Segundo os critérios material e do grau de vinculação à ordem jurídica, estamos inequivocamente perante atos de administração do Governo, ainda que no exercício de poderes discricionários. Trata-se de opções e de escolhas da administração, no exercício do poder administrativo.
O mesmo se passa quando uma Câmara Municipal delibera a construção de um túnel, de uma ponte municipal ou de um pavilhão gimnodesportivo.
Estamos perante atos de administração, ainda que no exercício de poderes discricionários, visando a satisfação de necessidades públicas, nos termos da lei.
Em consequência, são atos impugnáveis junto dos tribunais administrativos.
Merecem ainda neste âmbito uma referência especial os atos normativos da Administração Pública – os regulamentos (cfr. art.º 112.º da CRP). Os regulamentos, como atos normativos, são fonte de Direito, sendo por alguns Autores analisados no capítulo das fontes do Direito Administrativo, o que nos parece correto, embora devamos sublinhar que, para além de fonte de Direito, os regulamentos são sobretudo uma forma importante de administrar. São atos normativos de administração. A título ilustrativo, refira-se o exemplo de um regulamento do conselho de administração de um hospital aprovando o horário de funcionamento dos serviços de urgência e de consulta externa.
As distinções que acabamos de apresentar são, pois, estruturantes, com consequências fundamentais, nomeadamente, em termos de impugnabilidade dos atos e em sede de apuramento de responsabilidades.
No Anexo I, apresentamos um quadro com a estrutura do Setor Público, administrativo e empresarial, com indicação das entidades envolvidas na função de administração/gestão pública, a fim de dispormos de uma visão global, ainda que desprovida das particularidades e especificidades pertinentes.
- A função (administrativa e) financeira
A função ou atividade financeira pública está intrinsecamente ligada à atividade administrativa, tendo a mesma natureza. No entanto, distingue-se da atividade administrativa, desde logo, pelo seu objeto. São os recursos públicos, sua obtenção e afetação à satisfação das necessidades públicas, que constituem o objeto da atividade financeira.
A atividade administrativa, para além da sua autonomia própria de satisfação das necessidades públicas, é também instrumental, auxiliar ou suporte das demais funções do Estado e demais entidades públicas (política, legislativa, jurisdicional, financeira…).
Por sua vez, a atividade financeira é igualmente instrumental ou suporte das demais funções, incluindo da função administrativa.
Pode então afirmar-se que a função financeira é envolvente das demais funções, o mesmo se podendo dizer da legalidade financeira que é envolvente da legalidade administrativa.
A obtenção e afetação de recursos públicos é pautada por um conjunto de normas próprias e específicas, as quais compõem o Direito Financeiro. Assim, tendo presente, nomeadamente, o disposto no nº 6 do art.º 42º da Lei de Enquadramento Orçamental, aprovada pela Lei nº 91/2001, de 20 de agosto, nenhuma despesa pode ser autorizada ou paga sem que, cumulativamente, o facto gerador da obrigação de despesa seja legal, a despesa em causa disponha de inscrição orçamental, tenha cabimento, esteja adequadamente classificada, obedece à execução do orçamento por duodécimos e satisfaça o princípio da economia, eficiência e eficácia.
Esta disposição legal revela claramente a autonomia da função financeira e, ao mesmo tempo, a intrínseca complementaridade com a função administrativa, de que é envolvente. Fica também visível a legalidade administrativa e a legalidade financeira.
Como exemplo de atos financeiros, podemos indicar a autorização de despesas, a autorização de pagamento e a prestação de caução.
Em geral, os órgãos financeiros são os órgãos de administração.
Salienta-se, finalmente, que, no campo do direito aplicável, é interessante verificar a existência de normas financeiras, normas com motivações financeiras (por exemplo, as normas procedimentais do Código dos Contratos Públicos) e normas com impacto financeiro.
No Anexo II, apresenta-se um quadro estrutural da Administração Financeira Pública, incluindo na União Europeia, no qual podemos verificar a função de gestão e administração financeira, ao lado de outras funções próprias das Finanças Públicas.
- A função jurisdicional
É também de grande relevância, teórica e prática, determinar se um ato tem ou não natureza jurisdicional, confrontando em especial com a natureza administrativa, pois daí resultará a definição do regime jurídico aplicável, v.g. no que respeita à fundamentação, obrigatoriedade e prevalência das decisões (cfr. art.º 208.º da CRP), quanto ao acesso a documentos, a aspetos processuais ou procedimentais, nomeadamente, a contagem de prazos; e ainda relativamente a outros domínios fundamentais, maxime, os da interpretação, da integração de lacunas e, eventualmente, da própria fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade de normas jurídicas.
Assim, como referem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, no n.º 2 do art.º 202.º, a Constituição ensaia uma definição da função jurisdicional, ao dispor que «na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados». Acresce que a Constituição reservou aos tribunais o exercício da função jurisdicional (n.º 1 do art.º 202.º), os quais «são independentes e apenas estão sujeitos à lei» (art.º 203.º)[6].
Destes preceitos constitucionais igualmente se extrai que, à semelhança da função administrativa, também a função jurisdicional tem um caráter secundário, ao contrário das funções política e legislativa.
Convém esclarecer que, etimologicamente, administrativo (do lat. adminis- trati-) significa relativo à administração ou ação de reger, governar, dirigir ou gerir negócios públicos ou particulares; jurisdicional (do lat. jurisdictio) tem o sentido de dizer o direito, aplicar as leis, julgar. Por sua vez, julgar (do lat. judicare) significa decidir, resolver, sentenciar, assentar, dizer[7].
É certo que a função jurisdicional visa a prossecução do interesse público! Mas, e aqui reside a substância da distinção, a satisfação desta necessidade pública é conseguida pela aplicação do Direito aos casos concretos, pelo dizer o Direito e segundo o Direito, consubstanciando-se apenas em operações jurídicas e não em operações materiais[8].
É, pois, tal como a função administrativa, uma atividade secundária. Mas, ao contrário dela, a função jurisdicional caracteriza-se pela passividade, pela reação.
Visando a função jurisdicional, como fim em sim mesmo, dizer o direito, daí resulta, não ser indispensável a existência de um litígio ou conflito para resolver ou dirimir. Com efeito, é possível dizer o direito noutras situações, atribuindo-se ao ato do tribunal os efeitos das decisões que compõem litígios, como ocorre nos chamados processos objetivos em que não há partes em litígio, de que são exemplo as decisões proferidas em processos de fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
Como sublinha ANTÓNIO DE SOUSA FRANCO, «a aplicação do direito aos factos, definindo situações jurídicas de modo definitivo e por via independente, subordinada apenas à lei e à consciência e não a qualquer outro órgão, é o que verdadeiramente caracteriza a função jurisdicional»[9].
De todo o modo, na sua essência, a função jurisdicional destina-se a dirimir litígios, aplicando o Direito e segundo o Direito. Neste particular se distingue da função de controlo jurisdicional, a que nos referiremos seguidamente.
- A função de controlo (jurisdicional e não jurisdicional)
O que é o controlo? Poder-se-á falar da existência autónoma de uma função de controlo, ao lado, v.g. das funções política, legislativa, administrativa, financeira e jurisdicional?
Como defendemos noutra sede[10], tem sentido autonomizar a função de controlo. A este respeito, ANTÓNIO DE SOUSA FRANCO sublinha que no nosso tempo fala-se muito de «controlo como função de qualquer organização, a qual consiste em garantir que os atos praticados no âmbito dela e da sua atividade sejam ajustados aos objetivos que visam atingir e às regras e critérios a que deve obedecer»[11].
Muitos outros Autores se preocuparam com a análise do controlo, nos vários níveis em que pode perspetivar-se.
KARL LOEWENSTEIN dedicou-lhe especial atenção na sua obra Verfassungslehre (1959). Ao debruçar-se sobre o controlo do poder político, LOEWENSTEIN considera que a liberdade dos destinatários do poder só ficará garantida quando se controle devidamente o exercício do poder levado a cabo pelos seus detentores. A existência ou ausência de tais controlos, a sua eficácia e estabilidade, assim como o seu âmbito e intensidade, caracterizam cada sistema político em particular e permitem diferenciar um sistema político de outro. Assim, só a análise do mecanismo de vigilância e controlo do poder conduz à compreensão do processo político[12]. Nesta linha, LOEWENSTEIN interroga-se sobre as funções do Estado e sobre o tradicional princípio da separação de poderes, que prefere designar por separação de funções. A este propósito, critica a clássica tripartição de poderes (legislativo, executivo e judicial), propondo uma nova tripartição: a decisão política conformadora ou fundamental (policy determination), a execução da decisão (policy execution) e o controlo político (policy control).
Como se vê, LOEWENSTEIN autonomiza a função de controlo, atribuindo-lhe a dignidade de função fundamental do Estado moderno.
Parece-nos também ser autonomizável ou destacável a função de controlo.
Merece também especial referência a obra de PEDRO CARLOS BACELAR DE VASCONCELOS sobre o controlo do poder público[13]. Segundo este Autor, «é pela criação do Estado Moderno que o controlo do Poder se autonomiza enquanto problema jurídico», não se descortinando «qualquer antagonismo, por assim dizer, ontológico, entre as várias aceções, técnicas ou vulgares, da palavra «controlo». Dir-se-ia, à maneira de Pitigrili, que só não coincidem na medida em que se excluam. Adquirida a sua intrínseca e fundamental relacionalidade, «controlo» e «poder» opõem-se como termos simétricos ou equivalem-se como momentos distintos ou pulsões antitéticas de um mesmo fenómeno ou substância: imagem e objeto, direita e esquerda, superior e inferior, verso e reverso, rôle e contre-rôle, real e virtual[14]».
O que há de comum às várias espécies jurídicas do conceito é o efeito de sanção, pelo qual se torna possível discriminá-lo em criminal, civil, disciplinar ou político», a que nós também acrescentamos financeiro.
E ao teorizar o controlo jurídico do poder público, sublinha o Autor que «o controlo será então o meio que confere ao poder o carácter de poder controlado e, desse modo, coloca ao seu dispor uma outra via de legitimação e não pura ficção de um consenso suposto».
Na sua essência, acolhemos as posições expressas por PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS.
Parece-nos, pois, claro que o controlo é hoje um princípio fundamental do Estado de Direito, como bem sublinha JOÃO CAUPERS, quando refere que somente poderá falar-se em Estado de direito «quando, pelo menos, se respeitem quatro grandes princípios conformadores: 1.º Os diversos órgãos do Estado hão-de encontrar-se vinculados por regras jurídicas, mesmo que sejam autores de tais regras e detenham o poder de as modificar; 2.º Essas regras hão-de aplicar-se igualmente a todos os cidadãos que se encontrem em condições objetivamente idênticas; 3.º O respeito de tais regras por parte dos órgãos do Estado tem de ser suscetível de controlo, quer por via da fiscalização da respetiva conformidade constitucional, quer em aplicação de um determinado entendimento do princípio da separação de poderes; 4.º A modificação das referidas regras por parte dos órgãos do Estado com competência para o fazer não deve lesar os legítimos interesses dos cidadãos que basearam nelas a tomada de decisões relevantes quanto à sua vida social[15]».
No âmbito da função de controlo, podemos distinguir o controlo de natureza jurisdicional, como é o caso da fiscalização prévia de atos e contratos por parte do Tribunal de Contas. Trata-se de uma atividade de controlo que não se traduz em dirimir litígios, mas antes de apreciar a conformidade de atos e contratos com a ordem jurídica.
Por outro lado, a função de controlo pode revestir natureza política (por exemplo, a fiscalização política do Governo pela Assembleia da República – cfr. art.º 162.º da CRP) ou técnica – administrativa, financeira ou de outra natureza.
Por último, consoante o critério que tenhamos em consideração, poderemos distinguir controlo interno e controlo externo, independente ou dependente, de legalidade e de mérito, prévio, concomitante e sucessivo, além de outras distinções.
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Conclusão
A distinção entre as várias funções do Estado e das demais entidades públicas tem de obedecer à verificação cumulativa dos critérios orgânico, formal, material e do grau de vinculação à ordem jurídica.
Assim, por exemplo, a resolução do Conselho de Ministros em que se manifesta a solidariedade do povo português pela ocorrência de uma tragédia noutro País, constitui um ato político segundo a verificação cumulativa dos critérios mencionados: provém de um órgão político, com uma forma que também corresponde aos atos políticos, manifesta um valor fundamental da Comunidade (critério material) e de uma forma relativamente livre (critério do grau de vinculação à ordem jurídica).
É, assim, da ponderação de todos estes critérios que resulta a identificação precisa dos atos correspondentes, com as consequências aplicáveis, nomeadamente, em termos da sua impugnabilidade e de apuramento de responsabilidade.
Estando o Estado português integrado na União Europeia, afigura-se-nos que igualmente deveremos ter em atenção esta realidade, aplicando-se, mutatis mutandis, os critérios de distinção que apresentámos para distinguir as várias funções.
A fim de facilitar uma visão global destes critérios e a sua aplicação às diferentes funções, elaborámos o quadro seguinte, o qual sintetiza o que expusemos ao longo do texto, devendo a sua leitura ter em atenção as fragilidades próprias de uma síntese desta natureza.
[1] Cfr. também Lei n.º 74/98, de 11 de novembro (publicação, identificação e formulário de diplomas).
[2] A separação e a interdependência de poderes, cujo princípio foi sendo formado e consolidado ao longo da história, constitui uma trave-mestra da matéria objeto deste estudo. Podemos buscar as suas raízes na Antiguidade e acompanhar a sua evolução em vários Autores de referência, como Platão (423-347 a.C), Aristóteles (423-347 a.C), Políbio (200-118 a.C), Santo Agostinho (354-430), São Tomás de Aquino (1225- -1274), Niccolo Machiavelli (1460-1527), John Locke (1632-1704) e Montesquieu (1689-1755) – cfr. a excelente obra de Diogo Freitas do Amaral (2012), História do Pensamento Político Ocidental. Coimbra: Almedina.
[3] Cfr. JOSÉ F.F. TAVARES (2002), “Gestão pública, cidadania e cultura de responsabilidade”, in Estudos de Administração e Finanças Públicas, 2.ª edição. Coimbra: Almedina (2014).
[4] Sobre esta matéria, cfr. JOSÉ F.F. TAVARES (1998), O recurso contencioso do ato administrativo «independentemente da sua forma». Notas sobre a génese e a evolução da alteração constitucional de 1982, Lisboa (homenagem in memoriam ao Prof. Doutor Francisco Lucas Pires).
[5] Cfr. ANTÓNIO DE SOUSA FRANCO (2015), Finanças Públicas e Direito Financeiro, reimp. da 4.ª edição. Coimbra: Almedina
[6] J.J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA (2014), Constituição da República Portuguesa anotada. Coimbra: Coimbra Editora
[7] Cfr. Grande Dicionário da língua Portuguesa, coord. de JOSÉ PEDRO MACHADO, cit., Vols. I e II.
[8] Segundo J. BAPTISTA MACHADO, é essencial à jurisdição em sentido material, para além da imparcialidade do órgão, «o facto de a decisão ou sentença (a pronúncia) ser proferida de um ponto de vista estrita e exclusivamente jurídico.
A pronúncia que se baseia em qualquer outro ponto de vista, que tenha por objetivo a realização ou modelação ativa, transformadora, de qualquer ordem social e económica, que tenha que inspirar-se em cálculos, previsões ou presunções sobre qual será o efeito da decisão a tomar sobre uma determinada conjuntura esperada ou sobre uma eventual evolução das circunstância, em vez de se preocupar exclusivamente com o que é o direito do caso concreto no preciso momento em que julga, já não seria uma decisão jurisdicional em sentido material, mas uma decisão administrativa, ou pelo menos, contaminada por elementos de carácter administrativo (o que, talvez possa dizer-se, se verifica logo na chamada jurisdição voluntária (…)» (J. BAPTISTA MACHADO (1996), Introdução ao Direito e ao discurso legitimador Coimbra: Almedina, p. 146). Sobre os processos de jurisdição voluntária, cfr. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA, Processos de jurisdição voluntária, in POLIS, Vol. IV.
[9] ANTÓNIO DE SOUSA FRANCO, Dinheiros públicos, julgamento de contas e controlo financeiro, cit., p. 24.
[10] JOSÉ F.F. TAVARES (1998), O Tribunal de Contas. Do visto em especial, Coimbra: Almedina, pp. 159-162.
[11] ANTÓNIO DE SOUSA FRANCO, Dinheiros públicos, julgamento de contas e controlo financeiro…, cit., pág. 4. E, interrogando-se sobre a origem de controlo, escreve o Autor que «trata-se de uma palavra de origem francesa: onde há um papel ativo (rôle), haverá formas de o acompanhar, regular ou limitar (contrôle). Apesar disso, o vocábulo não parece contrário ao espírito da língua portuguesa, tendo hoje sentido e conteúdo que se não identificam com palavras que, em sinonímia, por vezes se tenta usar para o substituir: vigilância, fiscalização, inspeção, monitorização, policiamento, direção, domínio, etc.. E integra diferentes operações: acompanhamento, supervisão ou vigilância, inspeção, avaliação, censura ou aplicação de sanções, correção… Assim, controle ou controlo torna-se, nos sistemas modernos, uma palavra incontornável. Control (inglês), contrôle (francês) pode gerar em português controlar, a ação de controlar, ou controlo, em derivação do verbo controlar; ou poderá dar, diretamente do substantivo, controle. A razão do uso desta palavra é que ele se não refere apenas à fiscalização, que pressupõe uma ação destinada a detetar, prevenindo ou reparando, eventuais irregularidades, nem sequer à inspeção que pressupõe uma ação especificamente destinada a averiguar os factos que se prendem com determinada ocorrência ou com a atividade de uma entidade inspecionada; nem ao simples acompanhamento (monitorização) ou à mera avaliação; e, muito menos, ao sentido inglês de domínio… Fiscalização, inspeção ou palavras semelhantes designam apenas aspetos do controlo, que abrange uma realidade muito mais ampla (critérios de autocontrolo, que são em rigor como que uma “sombra” da gestão, formas de responsabilidade ou responsabilização, que vão muito para além da simples fiscalização ou inspeção), etc.. Esta a razão por que a correção terminológica emergente de uma análise moderna das organizações deve sobrepor-se ao tradicionalismo da linguagem» (ibidem).
Concordamos inteiramente com esta posição de ANTÓNIO DE SOUSA FRANCO.
[12] Cfr. KARL LOEWENSTEIN (1986), Teoria de la Constitución. Barcelona: Ed. Ariel, SA, pp. 29-30 (Edição castelhana de Verfassungslehre, Tübingen, 1959).
[13] PEDRO CARLOS BACELAR DE VASCONCELOS (1996), Teoria geral do controlo jurídico do poder público. Lisboa: Edições Cosmos.
[14] Op. cit., p. 15.
[15] JOÃO CAUPERS (1995), “Estado de Direito, ordenamento do território e direito de propriedade”, in Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n.º 3, junho, 1995.
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Novembro 2018