Benefícios e Preocupações Acerca do “Consequencialismo” Previsto na LINDB, no Atual Momento da Pandemia

Auditoria e Controle

Não é novidade para quem atua na administração pública, que os órgãos de controle devem ter uma atuação de orientação e até mesmo de proposição de medidas aos administradores públicos, através, por exemplo, de recomendações nos processos de controle e respostas às consultas formuladas pelos jurisdicionados, visando a alocação correta dos recursos públicos, sobretudo no atual momento da pandemia internacional.

Neste diapasão, cumpre rememorar a orientação de que “Os arquitetos de escolhas precisam saber como encorajar outros comportamentos socialmente benéficos em ao mesmo tempo”1 (TALER, e outros). E é neste sentido que os órgãos de controle devem atuar encorajando os gestores na tomada de decisões, que estejam ancoradas, principalmente, na Constituição Federal; mensurando estes “arquitetos”, as possíveis consequências jurídicas e administrativas do ato de gestão, consoante prevê os artigos 20 a 22 Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018, que inclui no Decreto-Lei nº 4.6572, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público.

1 TALER,  Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge: Como tomar melhores decisões sobre saúde, dinheiro e felicidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019 2BRASIL. Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. (Redação dada pela Lei nº 12.376, de 2010). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm>. Acesso em: 20 abril de 2020.

A atuação propositiva dos órgãos de controle, assim como também dos próprios gestores públicos, portanto, deve trilhar na direção de que a “previsão dos efeitos práticos da decisão é indispensável para determinar a compatibilidade da escolha realizada com o valor abstrato invocado”3 (JUSTEN FILHO, 2018).

Em função do seu papel constitucional, definido no art. 70 da CF/88, os órgãos de controle, mais notadamente os tribunais de contas deverão utilizar os “princípios constitucionais” explícitos (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência) e implícitos, tais como: a boa-fé objetiva, a razoabilidade e a proporcionalidade, quando na avaliação da conduta dos agentes públicos, sobretudo, neste cenário de decisões de gestão, que devem ser tomadas de maneira célere.

Não se pode olvidar, no contexto institucional dos tribunais de contas, a Resolução Conjunta ATRICON/ABRACOM/AUDICON/CNPTC/IRB nº 1, de 27 de março de 20204 (que define as “diretrizes e recomendações quanto às medidas que possam ser adotadas pelos tribunais de contas, de modo uniforme e colaborativo com os demais poderes, para minimizar os efeitos internos e externos decorrentes do coronavírus”), trazendo essa preocupação orientativa e propositiva, quando consignou, em seu art. 2º, que “o desempenho dos papéis de fiscalização e controle deve ser continuado, adotando-se a cautela, a coerência e a adequação ao contexto da crise, preferencialmente de forma pedagógica”.

3JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. 4RESOLUÇÃO CONJUNTA ATRICON/ABRACOM/AUDICON/CNPTC/IRB Nº1, DE 27 DE MARÇO DE 2020. Disponível em:http://www.atricon.org.br/normas/resolucao-conjunta-atriconabracom-audiconcnptc-irb-no-1/. Acesso em: 22 abril de 2020.

Mas é importante alertarmos acerca dos perigos da utilização desmedida e sem critérios desta avaliação de “consequências práticas” pelo gestor e pelos  órgão de controle, prevista na LINDB, em seus art. 20 a 22, no que se tem chamado na doutrina de “Consequencialismo”.

Segundo SOUZA NETO (2006), existem três críticas acerca do uso desmedido do “Consequencialismo”5:

A primeira se reflete na ponderação de consequências a ser realizada pelo Poder Judiciário, quando este em suas decisões, exerçe uma função que é típica dos poderes Executivo e Legislativo. Outra crítica que merece reflexão seria uma possível politização da Justiça. E por fim, o “caráter utilitarista” decorrente do “Consequencialismo”, que segundo o referido autor poderia em nome de um pretenso benefício coletivo, suprimir direitos individuais, atentando sobre a Constituição, em especial o Princípio da Dignidade Pessoa Humana.

Desta forma, ao decidir apenas amparado na busca da melhor ou adequada consequência para o caso concreto, o juiz poderia desencadear em um processo incontrolável de insegurança jurídica, produzindo resultado inverso ao que pretende o art. 20 da LINDB.

O que se almeja aqui é afastar a possibilidade de o julgador decidir com base em percepções pessoais, sem informações consistentes sobre os fatos, assim como se pretende registrar que não houve através da LINDB, a ampliação do poder discricionário do agente público, poder este que apenas existe tendo em vista autorização concedida pelo próprio ordenamento jurídico, e que deverá estar vinculado aos direitos fundamentais.

5SOUZA NETO. Cláudio Pereira de. Verticalização, cláusula de barreira e pluralismo político: uma crítica consequencialista à decisão do STF na ADIn. Revista Interesse Público. Belo Horizonte, ano 8, n. 37, maio/jun. 2006, p. 11-12.

Não obstante a tais ponderações, cumpre registrar o risco que pode ensejar na insegurança jurídica, quando o julgador e o administrador fixarem as bases de suas decisões, a partir de invocações genéricas de valores abstratos, tais como o interesse público e a economicidade, que inclusive violaria não apenas o próprio art. 20 da LINDB, que refuta a utilização de “valores jurídicos abstratos”; mas também o Código de Processo Civil, em especial o art. 489, §1º, inc. II e III; diploma este, importante registrar que se aplica supletivamente ou subsidiariamente aos processos administrativos, que incluem os “processos de controle” no âmbito dos tribunais de contas.

Segue o consequencialismo da LINDB através do art. 21 da Lei nº 13.655/2018, que prevê: “A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.” (grifo nosso)

O dispositivo citado goza de fragilidade, diante de uma possível inversão do ônus da prova, prática esta que deve ser refutada nos processos no âmbito dos tribunais de contas, uma vez que cabe ao gestor, por força do art. 70 da CF/88, prestar contas dos recursos públicos utilizados e demonstrar seu adequado uso; assim como ao administrador, se atribui o ônus de, antes de praticar o ato administrativo, se proceder a devida motivação deste; não tendo os tribunais de contas a obrigação de comprovar a escorreita aplicação de recursos pelos agentes públicos, assim como de reunir nos autos, informações e provas relevantes, quanto as consequências indesejáveis de uma eventual decisão desfavorável.

Outro aspecto que assinala o esvaziamento do art. 21 da Lei nº 13.655/2018 é a densidade da legislação e das normas na seara administrativa, e até mesmo na Teoria do Direito, que inseridas no ordenamento jurídico se prestam a definir os limites de atuação dos órgãos de controle, sejam subjetivos ou objetivos, o que colide com o caráter genérico da expressão “consequências jurídicas e administrativas” prevista no referido dispositivo, que por sua vez, pode desencadear em infindáveis discussões.

Analisado os dispositivos supracitados, que muitas vezes remetem à uma ação de futurologia, cumpre enfrentar o art. 22 da Lei nº 13.655/2018, que assim prevê: “Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.”

Inicialmente, cumpre considerar que os órgãos de controle, associando o art. 22 aos demais artigos aqui tratados: 20 e 21 da Lei nº 13.655/2018, ao avaliarem os obstáculos e as dificuldades reais do gestor, podem incorrer em uma casuística flexibilização, distante das leis vigentes que regulamentam a matéria sob exame; o que poderia criar um mundo paralelo interpretativo, consubstanciado na tentativa desesperada de vincular os limites da norma ao caso concreto.

Não se está aqui a defender que tais requisitos do art. 22 devem ser desconsiderados, sobretudo no atual momento de pandemia internacional, que obriga aos gestores, como alhures tratado, à tomada de decisões céleres, mas sim de se alertar que tal “requisito” não encontra amparo no ordenamento infralegal ou até mesmo constitucional, na medida em que o “Consequencialismo” inclui, de certa forma, no ordenamento jurídico brasileiro, o sistema “common law”, este que não se coaduna com as premissas consignadas na Carta Constitucional, inaugurando no sistema jurídico vigente, o denominado “realismo jurídico”, defendido por Norberto Bobbio (2012), que “vê o direito não como deve ser mas como é”6.

Não se pode olvidar as celebres lições de Canotilho7, que assinalam que a Constituição dirigente preocupa-se com “o que deve (e pode) uma Constituição ordenar os órgãos legiferantes e o que deve ser (como e quando deve) fazer o legislador para cumprir, de forma regular, adequada e oportuna, as imposições constitucionais”. Ou seja, é a Constituição a grande norteadora do sistema normativo, e por conseguinte, o parâmetro central que deve nortear a atuação dos órgãos de controle e dos agentes públicos.

Por outro lado, o que se está combatendo é a possibilidade de interpretação das normas, por exemplo, de direitos fundamentais, mediante circunstâncias eminentemente criativas e casuísticas, quando os princípios da proporcionalidade e razoabilidade já possibilitam, atualmente, aos julgadores a avaliação do ato de gestão diante de uma situação concreta, que para efeito de responsabilização deve ser considerada, quando poderá ser reconhecida, por exemplo, uma excludente de culpabilidade.

Neste contexto, oportuno salientar que os órgãos de controle deverão abandonar o antigo exame á luz da legalidade estrita, e se vincularem à “Juridicidade”, esta consubstanciada pela presença da própria legalidade, mas sobretudo das regras e princípios constitucionais, que darão suporte a análise da realidade que circunda o administrador público, amparada nos documentos que compõem os autos. Até ,6BOBBIO, Norberto.Teoria da norma jurídica. Trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. 5. ed. São Paulo: Edipro, 2012, p. 64-67. 7 Canotinlho, J.J Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Coimbra Editora, 1982, p. 11. porque, mais uma vez asseverando, não se pode desconsiderar o mundo dos fatos, inclusive econômicos e sociais, sobretudo diante deste momento de pandemia mundial.

A síntese possível e necessária

Sendo assim, estas breves reflexões sobre o denominado “Consequencialismo” previsto na LINDB, caminham no sentido da necessária aproximação dos órgãos de controle às premissas constitucionais, que  através de todo arcabouço probatório constante nos autos, devem estes importantes atores da fiscalização avaliarem as condições e obstáculos oferecidos aos agentes públicos, na condução do erário, se afastando de uma interpretação meramente mecanicista e formal, sobretudo no atual momento da pandemia internacional. Porém, de outro giro devem os orgãos de controle afastar qualquer tentativa de adoção de um pretenso “Realismo Jurídico” e de um possível casuísmo, com o objetivo de não se distanciar do sistema normativo, desconsiderando qualquer estratégia de defesa pautada no subjetivismo, e na invocação genérica de valores abstratos, como estabelece o próprio caput do art. 20 da LINDB.

Alessandro Macedo é servidor efetivo do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia TCM/BA – Auditor de Controle Externo. Atualmente Chefe da Assessoria Jurídica do TCM/BA. Mestre em Administração Pública. Pós graduado em Direito Público e Auditoria Pública. Advogado. Contador. Licenciado em Letras Vernáculas. Palestrante em diversos eventos promovidos pelo TCM/BA. Membro do Comitê Nacional de Jurisprudência do Instituto Ruy Barbosa. Professor de Direito Financeiro, Direito Constitucional, Direito Administrativo. Professor da Pós-graduação nos cursos de Direito Público e Empresarial da UNIFACS, da Pós Graduação em Direito Público Municipal pela UCSAL, da Pós Graduação em Licitações e Contratos da FACULDADE BAIANA DE DIREITO.

Alessandro Macedo