Breves reflexões sobre o “Direito Provisório” brasileiro.[1]
Não há dúvida que todo o compêndio de normas recém-editadas, sobretudo, pelo Governo Federal, que compõem o “Direito Provisório”[2], sinaliza para a flexibilização de regras: licitatórias (Lei 13979/MP 926), fiscais (PLC 39/2019, que altera a Lei de Responsabilidade Fiscal), trabalhistas (MP 927 e 936) e, por fim, trouxe a ideia de um aparente salvo-conduto para gestores desidiosos, através da desnecessária MP 966, que reedita critérios previstos na também questionável Lei 13.655/2018 que definiu premissas de interpretação às normas do Direito Brasileiro – LINDB.
Outra certeza é que a flexibilização nas regras de licitação (dispensa de requisitos de habilitação, simplificação administrativo prévio, flexibilização quanto à escola do fornecedor, inovações relativas à fase interna e preliminar, adoção de pregão e estimativa de preços simplificados, entre outras) são necessárias diante da rigidez da Lei 8666/93, associada ao momento atual de pandemia, que impulsiona aos gestores para uma rápida tomada de decisões quando se deparam com a urgente necessidade de aquisição de bens e insumos para o combate à crise (álcool gel, máscaras, respiradores, etc). Neste caso, tal flexibilização não deve conduzir à práticas irresponsáveis pelos gestores, uma vez que, através da simplificação requerida na norma, podem ocorrer desvios de recursos públicos ou até mesmo a sua má e desmedida utilização.
Na mesma direção, a flexibilização das leis trabalhistas consignadas na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, representa uma tentativa de manutenção e geração de emprego e renda, diante de uma pandemia que devasta, no plano econômico, as empresas, que por sua vez, devem contribuir para tal desiderato. Mas cumpre alertar que as MP 927 e 936 não podem ser utilizadas, diante da possibilidade de “livres” ajustes entre empregados e empregadores, para a retirada de direitos de trabalhadores, a contrário sensu, do que as normas referidas buscam tutelar, em especial: a percepção do benefício emergencial, a possibilidade de redução de jornada de trabalho e do salário a suspensão temporária da atividade laboral.
Em outro pólo, se encontra a terrível Lei Complementar 173/2020, que a reboque do auxílio financeiro aos Estados e Municípios, necessário, neste momento, empurrou um pacote de medidas que flexibilizam significativamente, a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF, chamando atenção especial, para a legitimada (pelo STF, inclusive) retirada da eficácia de importantes travas para evitar o desmando fiscal na gestão pública (arts. 14, 16, 17 e 24). Entre tais travas, atenuadas pela referida Lei Complementar, cita-se o art. 42 da LRF, que obriga o gestor a não deixar dívidas ou assumir compromissos sem os recursos correspondentes para cobertura de tais despesas, objetivando a norma a não inviabilização de futuras administrações.
Mais uma vez, o espírito público parlamentar inobservou o lado sombrio de tais medidas, empurrando os entes para o desenfreado gasto público, inviabilizando não apenas as futuras administrações, mas sobretudo, futuras gerações. Este projeto poderá desencadear na falta de recursos pós-pandemia, para a manutenção das atividades essenciais, gerando o caos financeiro, e até mesmo, novas mortes, diante do aumento da desigualdade social.
Por fim, a desnecessária MP 966, uma vez que a recente Lei 13.655/2018 já havia estabelecido novos critérios de interpretação às normas do Direito Brasileiro – LINDB. No pacote de flexibilização da responsabilização dos gestores públicos, a MP trouxe, repetidamente, dispositivos que a LINDB, recentemente alterada, já previa, como por exemplo: a previsão de que nas decisões administrativas, controladoras ou judiciais, a “motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”, assim como a norma que deixa evidente que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Não se pode olvidar, de outro giro, que os gestores não podem utilizar tal norma como “salvo conduto” para desastradas medidas que causem prejuízo ao erário; que serão, sem dúvida, objeto de análise e punição dos órgãos de controle.
A MP 966 é mais uma norma que se insere no Direito em tempos de COVID, criando mais dúvidas do que a almejada segurança jurídica; tumultuando, mais ainda, os processos de responsabilização. Como “grande” e talvez única contribuição da MP, a definição de “erro grosseiro” e seus requisitos de aferição, trazendo, também, a reboque o que a LINDB não conseguiu resolver, tão defendido pelos seus autores: a imprecisão e a vagueza de determinados elementos, tais como: “complexidade da matéria”, “circunstâncias práticas”, “erro grosseiro de opinião técnica”, inclusive ampliados pelo STF, quando sugeriu, na aplicação da MP, a observância de “consensos técnicos” e obediência aos vagos princípios da “precaução” e “prevenção”.
Continuamos produzindo normas neste momento, que geram mais insegurança do que certezas, e neste caso lembro das palavras do Prof. Paulo Modesto: “Redução de complexidade é certeza jurídica”. Dificuldades à vista aos órgãos de controle na apuração da responsabilidade. Esperávamos, nós juristas, que o STF afastasse esta névoa, e não ampliasse o rol de conceitos jurídicos indeterminados, que gerará não o “apagão das canetas”, defendido pelos autores da LINDB e da MP 966, e sim o lado sombrio do “apagão do controle”.
Logo, estão postas neste paper algumas breves reflexões acerca deste “Direito Provisório”, que visa, em tese, flexibilizar as regras acima apontadas, para combate à pandemia, mas não podendo descuidar os gestores, que a flexibilização aqui apontada não pode ser utilizada para desmandos nos processos licitatórios, no controle fiscal e financeiro, e na sua atuação de modo geral; e neste caso nenhuma norma neste mundo (é o que se espera) será capaz de evitar possíveis responsabilizações diante de eventuais prejuízos ao erário.
Parafraseando passagem do livro “Direito Provisório e a emergência do Coronavírus”, do brilhante Professor Jacoby Fernandes, que cita o mestre baiano, Inaldo da Paixão, Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado da Bahia; este que, por sua vez, assim assevera, com base nas lições do professor da UNICAMP, Eduardo Fagnani: “situações extraordinárias demandam ações extraordinárias, e complemento empatia, e bom senso nas análises. Não se esquecendo de que há momentos em que nada a fazer não significa não fazer nada”.
[1] Alessandro Macedo é servidor efetivo do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia – TCM/BA – Auditor de Controle Externo. Atualmente Chefe da Assessoria Jurídica do TCM/BA. Mestre em Administração Pública. Professor da Pós-graduação da Unifacs, da Ucsal, e da Faculdade Baiana de Direto.
[2] Expressão utilizada pelo brilhante Prof. Jacoby Fernandes no livro de sua autoria e sob sua coordenação: Direito Provisório e a Emergência do Coronavírus. Editora Fórum.