Governo Aberto e o Processo Participativo nos Tribunais de Contas

Dados, Informação e Conhecimento

Um “governo aberto” depende apenas da disponibilização ativa[1] das informações públicas? Ou necessita de estratégias mais efetivas? Esse é o principal foco  que se pretende discutir nas linhas seguintes, além de demonstrar como a sociedade pode participar e ser parceira dos tribunais de contas (TCs).

Um “governo aberto” não se limita à transparência, mas também  deve priorizar o envolvimento da sociedade, por meio do exercício do controle social[2]. Controle social se define como o exercício de um direito que é assegurado a todo cidadão, de conhecer, fiscalizar, opinar e interferir nas políticas públicas, em defesa do interesse coletivo[3], sendo considerado “um dos mecanismos mais eficazes para qualificar a gestão pública”[4].

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2010) firmou a ideia de um governo aberto como um governo sensível e receptivo[5]. Dessa forma,  os governos devem investir constantemente no aprimoramento da receptividade e do devido tratamento das demandas dos cidadãos, com foco no desenvolvimento transversal das competências e das virtudes cívicas dos servidores das diversas áreas de atuação, com temas específicos que incluam a internalização de comportamentos integrativos da sociedade-gestão pública.

Do ponto de vista sociocultural e relacional é essencial considerar o papel dos sistemas de educação como motor de transformações relevantes, apostando na formação e capacitação tanto dos cidadãos como dos servidores públicos[6]. Nesse sentido, Gutiérrez-Rubí (2011)[7], em seu artigo de opinião, chama a atenção para o fato de que o uso inteligente, profundo e intensivo das novas tecnologias deve andar de mãos dadas com uma profunda transformação cultural do que se espera da função pública no século XXI, deixando claro que não se trata apenas de tecnologia, mas de uma tecnologia social e relacional, que impulsiona e estimula uma cultura de mudança na concepção, gestão e prestação do serviço público.

Quando o indivíduo se engaja em pautas cívicas ele desenvolve habilidades e hábitos que podem beneficiar outros indivíduos e a sociedade em geral[8]. Um agente público com consciência cidadã elevada normalmente possui uma visão ampla e zela pelos interesses mais nobres da organização, e consequentemente contribui para a melhoria da sua eficácia (atingimento de objetivos). Ao final, saem fortalecidos: o controle social, a democracia, e o sentimento de pertencimento à instituição, por esse agente.

Em seu conceito básico, um governo aberto é aquele que disponibiliza as informações governamentais e os dados de domínio público, para que a sociedade os utilize livremente[9], sendo um importante pressuposto à colaboração e à participação dos atores sociais (sociedade civil organizada e sociedade em geral), uma vez que a oferta de dados públicos abertos “tende a contribuir para uma maior transparência governamental, criando melhores possibilidades de controle social das ações governamentais”[10]. No entanto, não basta divulgar livremente nos sites ou redes sociais uma série de dados e esperar uma melhora instantânea na gestão pública. As informações disponibilizadas devem ser objetivas e com linguagem cidadã, ou seja, com uma redação simples, sem exagero de palavras refinadas, palavras estrangeiras, siglas ou termos muito técnicos, sem uma explicação adequada. Pois “o maior valor da informação vem de sua capacidade de ser acessada, compreendida e gerenciada pelo público em geral”[11].

Graças à globalização da informação e seu fácil acesso a todos, o conceito de “expertos” (especialistas), muitas vezes utilizado para caracterizar os funcionários técnicos que exercem uma atividade pública, mudou ao longo dos anos, uma vez que o “especialista” se redefiniu como uma pessoa que possui conhecimentos práticos, hábeis e experientes, independentemente de estarem ou não vinculados a estruturas institucionais[12]. Desse modo, muda-se a visão em relação ao processo decisório: de estática e imposta de cima para baixo, para uma relação mais equilibrada entre cidadão e governo, possibilitando o aproveitamento do saber dos cidadãos como fonte de informação e melhoria da eficácia organizacional. O envolvimento da sociedade não deve ser entendida como falta de confiança na atuação governamental, ou mesmo na intenção de haver uma concorrência com as instituições formais. Participar significa tornar-se parceiro da administração pública, visto que são os usuários diretos dos serviços que vivenciam de perto e conhecem as reais necessidades, e assim podem contribuir sugerindo ajustes, melhorias ou alertando sobre possíveis falhas.

Atualmente, convivemos com um cenário complexo, em que as estruturas tradicionais da democracia representativa convivem com uma nova cultura participativa, com cidadãos mais empoderados. A democracia representativa (exercida por governantes e legisladores públicos) continua sendo o pilar fundamental do nosso sistema, mas deve ser aperfeiçoada para fortalecer as relações entre representantes e representados[13], visto que “uma sociedade política democrática se assenta em dois pilares: suas instituições e seus cidadãos”[14]. O sistema representativo não impede que os atores sociais contribuam para além dos impostos que pagam e para além do direito ao voto, pelo contrário, a Constituição Federal da República do Brasil nos garante o direito de acesso à informação (art. 5º, inciso XXXIII) e à participação direta, nos termos da lei (art. 14). Além das formas previstas na constituição é possível ainda exercer o controle social por meio dos conselhos públicos, observatórios sociais, orçamentos participativos, das associações de bairro, das audiências públicas, e acompanhando as ações públicas para a emissão de manifestações etc.

Como copromotores do fortalecimento da democracia, os tribunais de contas (TCs) têm empreendido forças no sentido de estimular o engajamento da sociedade, com projetos de fomento ao controle social e fortalecimento das unidades internas de comunicação social, que se aperfeiçoam continuamente para levar informações relevantes à população, por meio de diversos canais; das escolas de contas, responsáveis pela capacitação dos servidores, dos jurisdicionados[15] e da sociedade; e das ouvidorias, unidades estratégicas que atuam para que as contribuições dos cidadãos promovam melhorias e transformações importantes na gestão pública. As ouvidorias são responsáveis pelo incentivo à participação interna e externa, e pelo recebimento e tratamento das manifestações (denúncias/comunicações de irregularidades, reclamações, elogios e sugestões de melhorias) e dos pedidos de acesso a informações (transparência passiva)[16]. Além disso, os TCs zelam pela própria transparência ativa e avaliam a transparência dos demais órgãos estatais sob seu controle. Nas palavras do Conselheiro Sebastião Helvécio, membro do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais[17], todos os TCs estão alinhados em seus planos estratégicos com a ideia de desenvolvimento sustentável, e que o entendimento de que os tribunais de contas eram apenas guardiões do dinheiro público mudou; agora, a principal missão atribuída a eles é contribuir com a gestão dos governos a favor da sociedade.

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[1] A transperência ativa ocorre quando os governos disponibilizam as informações diretamente nos sites ou redes sociais.
[2] Yu, Harlan; Robinson, David G. The new ambiguity of ‘Open Government’. Ucla L. Rev. Disc, v. 178, 2012, p. 180
[3] Resolução 02/2014-ATRICON-OUVIDORIAS
[4] Olvera, Alberto J; Vera, Ernesto Isunza. Democratización, rendición de cuentas y sociedad civil: participación ciudadana y control social. México D.F, Mexico: Editorial Miguel Ángel Porrúa, 2010, p. 477.
[5] Ramírez-Alujas, Álvaro. Gobierno abierto es la respuesta: ¿Cuál era la pregunta?, 2012, p. 18.
[6] Garias, Silvia Carmona. Democracia y gobierno abierto: una nueva cultura administrativa. Madrid, España, 2019, p. 212.
[7] Gutiérrez-Rubí, Antoni. “Open Government y crisis económica”, columna de opinión, Diario Cinco Días del martes 25 de enero de 2011, Madrid.
[8] Gomes, Ana Cristina Passos; Bastos, Antônio Virgílio Bittencourt; Mendonça Filho, Euclides José; Menezes, Igor Gomes. Cidadania e cidadania organizacional: Questões teóricas e conceituais que cercam a pesquisa na área. Estudos e Pesquisas em Psicologia, p. 711-731, 2014, p. 721.
[9] Agune, R. M.; Gregorio Filho, A. S.; Bolliger, S. P. Governo aberto SP: disponibilização de bases de dados e informações em formato aberto. In: Congresso Consad De Gestão Pública, III, Brasília, 2010, p. 9.
[10] Vaz, José Carlos; Ribeiro, Manuella Maia; MATHEUS, Ricardo. Dados governamentais abertos e seus impactos sobre os conceitos e práticas de transparência no Brasil. Cadernos Ppg-Au/Faufb., Salvador, v. 9, p. 45-62, 2010, p. 48.
[11] García, Jesús García. Gobierno abierto: transparencia, participación y colaboración en las Administraciones Públicas, 2014.  p. 85.
[12] García, 2014, p. 76.
[13] Garias, 2019, p. 10.
[14] Arteta, Aurelio. El saber del ciudadano: las nociones capitales de la democracia. 2008 (cap. 10, El Ideal de la democracia republicana, por Javier Peña, p. 305)
[15] Órgãos do governo sob a fiscalização dos tribunais de contas.
[16] A transparência passiva ocorre quando os governos fornecem a informação mediante solicitação dos cidadãos.
[17] https://irbcontas.org.br/primeira-live-da-serie-do-irb-trata-de-avaliacao-de-politicas-publicas/

*Nara Rodrigues –Analista de Controle Externo – Gestão de Pessoas (TCE-GO), Especialista em Ouvidoria Pública, Mestranda em Cidadania e Ética (Universidade de Barcelona), http://lattes.cnpq.br/9504041054387321,  https://www.linkedin.com/in/nara-rodrigues-748361187/

Nara Rodrigues