Nos meus tempos de universitário, muito me faltava, menos a vontade de caminhar. Fiel a essa premissa é que, aos sábados, percorria a pé o trecho do Campo Grande à Sé para visitar livrarias e sebos em busca de livros de contabilidade e de auditoria.
Idos depois, já trilhando os caminhos do controle público, mantive esse hábito. Há muito cultivo a noção de que conhecimento é o único bem que temos que não há ninguém que possa tomar e que levaremos conosco até a eternidade.
Numa dessas incursões nas prateleiras da Civilização Brasileira, descobri, por acaso, um livro intitulado “Relatórios”. Quando vivemos em um domo, somos forçados a imaginar que tudo pertence à nossa bolha. Assim logo pensei que fosse um manual para elaboração de relatórios de auditoria.
Mas, ao folhear suas páginas, logo percebi o autoengano. Tratava-se de uma edição com os “Relatórios” de Prestação de Contas de Graciliano Ramos, enquanto alcaide de Palmeiras dos Índios, pequena cidade do agreste alagoano. Era uma coedição da Fundação de Cultura do Recife e da editora Record, com organização do jornalista, poeta e historiador Mário Hélio Gomes de Lima, datada de 1994.
Sim, o autor de clássicos como “São Bernardo” (1934), “Angústia” (1936) e “Vidas Secas” (1938), este último o meu preferido, também teve seus tempos de administrador público. Sim, além de ter escrito romances, contos, crônicas e literatura infantojuvenil, Graciliano foi também um defensor das causas sociais ao preconizar que: “Qualquer romance é social. Mesmo a literatura ‘torre de marfim’ é trabalho social, porque só o fato de procurar afastar os outros problemas é luta social”.
Em 2004, os “Relatórios” de Graciliano Ramos foram fundamentais para a elaboração da minha dissertação intitulada “Redescobrindo a Contabilidade Governamental: uma mudança de paradigmas para uma melhor transparência”. Muito a citei no capítulo “Relação entre a Contabilidade e a Accountability”.
Naquela oportunidade, enfatizei que no Brasil, de cultura jurídica positivista, há os que creem que tudo é resolvido por meio de leis, como se elas fossem o próprio Direito. Efetivamente não são, como bem nos lembra Sófocles, em sua Trilogia Tebana, com Antígona e o seu famoso debate com Creonte, em que aquela invoca as leis não escritas.
Também registrei que, em uma pequena cidade no sertão baiano, em 1989, vi um cartaz afixado na praça central informando os recursos recebidos, suas origens e as devidas aplicações, classificadas sem os rigores da prática contábil e orçamentária, mas em linguagem acessível para qualquer cidadão comum, tais como os gastos com professores, com médico e enfermeiras, com o pessoal da limpeza, a recuperação da estrada vicinal, a aquisição da ambulância, o saldo em caixa e a pagar.
Percebia-se ali, de forma simples e transparente, a fiel prática da accountability (obrigação de prestar contas), o que, em essência, fez Graciliano em seu relatório apresentado ao Conselho Municipal de Palmeira dos Índios, datado de 19/03/1928, sem nenhuma lei que impusesse a responsabilidade fiscal, assim se posicionando: “De resto preciso efetuar uma economia considerável, não só para custear as despesas como para fazer face à dívida que a administração passada me legou. Esse pesadelo, que a mensagem do meu antecessor diz ser de 4:900$000, é na realidade maior, pois só à empresa fornecedora de luz a Prefeitura deve acima de cinco contos”.
Sobre os gastos desnecessários, assim disse Graciliano: “Acho absurdo despender um município que até agora nada gastou com a instrução, 2:000$000 para manter uma banda de música. Dois contos de réis em letra de fôrma: os dispêndios têm sido maiores”.
Na conclusão do Primeiro Relatório ao Governo do Estado, datado de 10/01/1929, Ramos dá uma aula do que é ser um gestor responsável: “Há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal; […] Fechei os ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1:325$500 de multas. Não favoreci ninguém”.
No Segundo Relatório ao Governador, datado de 11/01/1930, Ramos valoriza o servidor público ao afirmar: “Já estou convencido. Não fui eu, primeiramente porque o dinheiro despendido era do povo, em segundo lugar porque tornaram fácil a minha tarefa uns pobres homens que se esfalfam para não perder salários miseráveis. Quase tudo foi feito por eles”.
Razão assiste a Graciliano, já que não basta apenas estabelecer limites, pois como se pode prestar serviços sem o concurso de pessoas? É difícil imaginar um hospital sem médicos e enfermeiras, uma escola sem professores, segurança sem policiais. Se há excessos, é preciso coibi-los com um sistema de controle – interno, externo e social – efetivo.
De mais a mais, não se pode olvidar que um orçamento bem-feito e bem executado, mais do que uma questão legal, é um compromisso essencial à função pública. Sem aquele, pode-se afirmar que não há esta. Afinal, como disse Marcus Tullius Cicero (Roma, 55 a.C.): “O orçamento nacional deve ser equilibrado […]”.
Caminhando para a conclusão, registro que, na edição de 2024 da editora Record, com o título “O prefeito escritor: Dois retratos de uma administração”, o prefácio está assinado pelo presidente Lula, que diz: “O Graciliano Ramos que emerge destas páginas é o gestor público empenhado em manter a responsabilidade fiscal, mas ao mesmo tempo cuidar de toda a população, sobretudo dos mais pobres”.
Como aprendi com Graciliano que “a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”, digo e espero que nas nossas caminhaduras esse livro se torne um best-seller e que se transforme, enfim, em um verdadeiro manual de gestão pública.