Requisição de Documentos pelos Tribunais de Contas – Uma Análise à luz da Nova Lei de Abuso de Autoridade

Auditoria e Controle

Ismar Viana*

A Lei n. 13.869/2019, em seu art. 33, positivou que “exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal” configura abuso de autoridade. Diversamente do que fez com outros tipos, no art. 33 o legislador não trouxe elementos como “fiscalização” ou “investigação”, por exemplo, do que se extrai, logo de início, que todos os agentes públicos enquadráveis no rol do artigo 2º da referida Lei podem figurar como sujeitos ativos do tipo, desde que ajam sem observarem regras de competência.
Sendo a proposta deste artigo voltada à análise do tipo penal com foco no poder de requisição documental conferido aos Tribunais de Contas, imperioso levantar as competências constitucionalmente outorgadas a esses órgãos que guardam direta relação com esse poder, para, assim, identificar quem são os agentes competentes para a concretização dessas competências institucionais e em quais circunstâncias.
A Constituição Federal, em seu art. 71, outorgou aos Tribunais de Contas competências de natureza jurisdicional e sancionadora, constituindo consectário lógico ao exercício dessas competências o poder para requisitar informações, exigir a adoção de providências necessárias ao exato cumprimento da lei, o que tem sido feito, em regra, no bojo de fiscalizações e instruções processuais, no que se refere ao poder de requisitar informações e documentos, e a partir de decisões de controle externo, no que tange à imposição de determinações, ao cumprimento de obrigações por parte dos agentes controlados, aqueles que estão sujeitos ao dever de prestar contas.
Para garantir concretude ao Controle Externo da Administração Pública, as leis orgânicas dos Tribunais de Contas passaram a dispor sobre os mecanismos de controle e instrumentos de fiscalização por via dos quais é pautada a relação entre controlador e controlado, que não é marcada por vínculo de subordinação hierárquica, mas que decorre de uma relação especial de sujeição que emerge do dever de prestar contas enunciado no artigo 70 da CRFB/88.
A Lei n. 8.443/1992 (Lei orgânica do TCU – LOTCU), cujo texto é reproduzido por diversos Tribunais de Contas estaduais e municipais – até em decorrência da simetria constitucional imposta pelo art. 75 da CRFB/88 –, prevê, em seus artigos 86 e 87, que aos servidores do TCU que exercem funções específicas de controle externo, quando credenciados pelo Tribunal para desempenhar funções de auditoria, de inspeções e diligências, é outorgada a competência para requerer, nos termos do RITCU, aos responsáveis pelos órgãos e entidades sujeitos às inspeções, auditorias e diligências, as informações e documentos necessários para instrução de processos e relatórios, sendo-lhes assegurado o acesso a todos os documentos e informações necessários à realização de seu trabalho.
Assim, a despeito de a lei utilizar o termo “requerer”, trata-se de “requisitar”, na medida em que a sonegação documental e a obstrução ao livre exercício das auditorias estão sujeitas à responsabilização-sanção, por força dos incisos V e VI do art. 58 da LOTCU, intimidação que se presta a afastar interpretações que possam conferir ao dispositivo mero comando de solicitação.
Dessa forma, encontrar-se-á atendido o “expresso amparo legal” de que trata o art. 33 da 13.869/2019 quando a informação for requestada por servidor que exerce função específica de controle externo e desde que se encontre credenciado pelo Tribunal de Contas, ou seja, no âmbito da sua regular atuação funcional, devendo ser observado que, em matéria de competência, por força do princípio da legalidade administrativa, a máxima do Direito que deve prevalecer é a de “quem pode o mais, só pode o mais”, notadamente em se tratando de atuação estatal que pode afetar a esfera de direitos subjetivos de terceiros.
Vê-se, pois, que os auditores de controle externo do TCU (art. 4º da Lei n. 10.356/2001), no regular exercício das auditorias e instruções processuais, estão legalmente amparados para instarem os agentes controlados a apresentarem documentos e prestarem informações necessárias ao esclarecimento de atos objetos de apuração, estando a negativa ao cumprimento dessas requisições sujeita à aplicação de multa, à rejeição de contas e a outros consectários, após observado o devido processo legal na esfera de controle externo.
Por outro lado, tem-se levantado que o exercício do poder de requisição de forma direta, sem que seja por intermédio do Tribunal de Contas a que atua junto, pode sujeitar o Procurador do Ministério Público de Contas às sanções do caput do art. 33 da Nova Lei de Abuso de Autoridade, especialmente em razão do disposto no inciso I do art. 81 da LOTCU, de reprodução similar nas leis orgânicas dos Tribunais de Contas dos entes subnacionais, que preconiza que ao membro do MPC cabe promover a defesa da ordem jurídica, requerendo, perante o Tribunal de Contas da União as medidas de interesse da justiça, da administração e do Erário, conforme decidiu o Ministro Dias Toffoli, no último dia 29 de julho de 2020, em sede de Medida Cautelar na SS 5.416 – DF, numa sinalização de apego ao princípio da conformidade funcional.
Sobre esse ponto, necessário se faz esclarecer que o verbo nuclear do tipo é exigir, não havendo enquadramento quanto à conduta solicitar, principalmente porque o membro do Parquet de Contas pode requerer ao Tribunal de Contas o afastamento temporário do responsável, se existirem indícios suficientes de que, prosseguindo no exercício de suas funções, possa retardar ou dificultar a realização de auditoria ou inspeção, causar novos danos ao Erário ou inviabilizar o seu ressarcimento, nos termos do artigo 44 da LOTCU.
Assim, esses pedidos que partem do MPC não têm outra finalidade senão a de evitar que representações sejam feitas sem a devida justificação, são pautados, pois, pelo formato de controle dialógico da Administração Pública, anunciado, em grande medida, pelo novo texto da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, de modo que a conduta de expedir ofícios aos agentes controlados requerendo o envio de documentos e a prestação de informações não se amolda, por si só, ao núcleo do tipo exigir.
Não há também que se cogitar a possibilidade de incidência no tipo quando os expedientes do Ministério Público que atua junto aos Tribunais de Contas porventura invocarem o artigo 10 da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, que regula a ação civil pública, tendo em vista que, embora o texto do aludido artigo preconize que configura crime a recusa, o retardamento ou omissão de dados requisitados pelo Ministério Público, trata-se de requisição relacionada ao ajuizamento de ação civil.
Diante disso, não sendo o Ministério Público de Contas legitimado para tal fim, os sobreditos expedientes têm natureza de solicitação, e não de requisição, até porque eventual inação do agente controlado não gera contra ele a imposição de penalidade ou cumprimento de obrigação, descaracterizando, assim, o efeito de intimidação, necessário à configuração do tipo.
Isso, contudo, não relativiza a indispensável atuação dos membros do Ministério Público que atuam junto aos Tribunais de Contas no controle de bens, valores e dinheiros públicos, a quem se aplicam, subsidiariamente, no que couber, as disposições da Lei orgânica do Ministério Público pertinentes a direitos, garantias, prerrogativas, vedações, regime disciplinar e forma de investidura no cargo inicial da carreira .
Aliás, a expedição de ofícios solicitando dados e informações das unidades gestoras milita em favor dos responsáveis pelas unidades jurisdicionadas demandadas, na medida em que a negativa de resposta pode dar ensejo a representações temerárias, movidas, não raras vezes, por provocações feitas por cidadãos aos agentes ministeriais de contas, que, com base nos princípios da obrigatoriedade e do “in dubio pro societate” podem terminar justificando representações – cumuladas ou não com pedidos de expedição de medidas cautelares – em peças documentais levadas por denunciantes ou, por exemplo, em dados incompletos ou desatualizados disponibilizados em portais da transparência.
Para além disso, há que se ter em mente que seria contraproducente, antieconômico e ineficiente outorgar ao MPC a competência para representar, reconhecendo a missão de guarda da lei e fiscal de sua execução, e não dotar os seus membros dos instrumentos necessários ao cumprimento dessa missão.
Dessa forma, em tempos de Lei de Aceso à Informação, em que a regra é a transparência e o sigilo é a exceção, levando-se em conta, ainda, o poder de representação que é deferido aos integrantes dos Tribunais de Contas que desempenham atividades finalísticas de controle externo, será de difícil configuração, na prática, o enquadramento da conduta de agentes de controle ao art. 33 da Lei 13.869/2019, salvo se restar demonstrado o especial fim de agir a que aduz o art. 1º da referida Lei e incontroversamente evidenciado o intento intimidador do agente público que não esteja expressamente amparado por lei para requisitar informações.

ISMAR VIANA. Mestre em Direito. Auditor de Controle Externo. Professor. Advogado. Autor do livro “Fundamentos do Processo de Controle Externo”. Membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador brasileiro.

Ismar Viana