Respeitar a Constituição é exigir tecnicidade nas ações dos Tribunais de Contas

Auditoria e Controle

*Francisco Gominho

A sociedade brasileira anseia por um país que combata e puna a corrupção com seriedade, por serviços públicos que funcionem. Porém, na contramão disso, o que tem sido visto é o ataque ao serviço público em geral, inclusive aos órgãos de controle, como o Ministério Público e os Tribunais de Contas. Ao MP, os ataques são incisivos e à luz do dia, e vêm em forma de medidas de conteúdo intimidatórios aos seus agentes. Já aos TCs, são de forma indireta, a partir de decisões judiciais que, aos poucos, vêm retirando competências conferidas pela Constituição, o que se dá, reconheça-se, em razão da inobservância do princípio da simetria constitucional.

Há 32 anos, a Lei Maior ampliou as competências dos TCs, mantendo, dentro de um só órgão, as funções de investigar (auditoria e instrução), de parquet e de julgar, dotando-lhes dos meios necessários: além de um MP de Contas e um colegiado julgador (ministros e conselheiros), determinou um quadro próprio de pessoal, na única passagem em que o constituinte faz uso dessa expressão. Para tal, são selecionados agentes por concurso público, com nível superior como requisito mínimo, para atuar com toda a tecnicidade, independênciae regularidade que a função de auditoria e instrução processual exige. Esse sistema complexo exige um cuidado redobrado, conforme decidiu o constituinte originário, em 1988.

Disfunções nos quadros de pessoal dos TCs, embora não sejam notadas facilmente pela população, são altamente prejudiciais ao controle. Cargos comissionados, como é de conhecimento geral, são, em grande medida, preenchidos com critérios políticos, o que, por si só, polui o poço de imparcialidade do servidor e da atuação institucional. É contraintuitivo esperar que um servidor nomeado por vontade de alguém possa auditar as contas daquele que tem força e poder para  tirar-lhe o cargo, ou de quem este deseje proteger.

Absurdos assim ainda são verificadas em alguns Tribunais de Contas até hoje, em descompasso absoluto com as regras e garantias processuais, visto que a função investigativa de auditoria e instrução, essencial aos processos e decisões dos TCs, por princípio básico de isonomia, autoridade e independência, deve ser feita, única e exclusivamente, por auditores de controle externo, selecionados por meio de concurso público.

Caso esse paradigma não seja respeitado, torna-se possível anular todos os atos de investigação, acusação e julgamento, seja por vício de competência ou pelo comprometimento da imparcialidade. Defender, portanto, que o devido processo legal seja seguido ao pé da letra é defender que os corruptos possam ser punidos, os inocentes, inocentados, e que a justiça seja efetivamente imparcial, técnica e fiel ao que dizem a Constituição e as leis, velando pela regular aplicação dos recursos arrecadados do contribuinte.

Importante frisar que não se trata de ataque a servidores comissionados, mas derespeito à CF/88: a quantidade dos cargos comissionados não pode ser desproporcional, não podem ser desviados para atividades técnicas e finalísticas, não podem usurpar competências de cargos efetivos. Além da simetria, a Constituição determinou expressamente que os Tribunais de Contas devem dispor de um quadro próprio de pessoal e o TCU possui apenas 28 cargos em comissão. Cargos comissionados em excesso representam um risco de influência política dentro de um órgão que deve gozar de total independência.

Em recente julgado, aliás, amplamente veiculado em sites jurídicos, o Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.511.053) consolidou o entendimento de que “a contratação de comissionados para cargo técnico é ato de improbidade administrativa”.

Não há como esperar efetividade dos Tribunais de Contas sem a profissionalização e regularidade da função finalística de auditoria e instrução processual, conformada ao texto constitucional, às decisões dos Tribunais Superiores, às normas internacionais de Auditoria, sem desvios, sem usurpação de competências. O aperfeiçoamento dos TCs passa pela redução do quantitativo e estabelecimento de critérios objetivos para os cargos em comissão, evitando-se o fatiamento de cargos públicos por interesses pessoais e/ou políticos.

A Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas doBrasil (ANTC) não defende poder absoluto aos auditores de controle externo, pelo contrário, defende que o devido processo legal seja cumprido, que o conflito de interesses seja mitigado.

Diante da maior crise sanitária dos últimos cem anos, o ano de 2020 será lembrado pelo grande volume de verbas destinadas ao combate da pandemia de covid-19. Quanto mais técnica, imparcial e regular for a fiscalização pelo Tribunal de Contas, mais eficiente e efetivo será o benefício à população, pois o uso do dinheiro público deve ser feito sem preferências políticas.

FONTE: Correio Braziliense

*Francisco Gominho – Auditor de Controle Externo do TCE/PE e presidente da AssociaçãoNacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil – ANTC.

 

 

Francisco Gominho