IRB Território: análise sobre a fiscalização de políticas públicas

Ana Clara

*Nelson Nei Granato Neto, gerente de Políticas Públicas e Analista de Controle Externo do TCEPR

            A pressão para os Tribunais de Contas fiscalizarem políticas públicas é um fenômeno de longa data e crescente ao longo do tempo. Por um lado, esta pressão vem de inúmeros atores sociais externos aos TCs, com as mais diversas demandas de acesso a serviços públicos de qualidade e de boa utilização dos recursos públicos, especialmente no contexto brasileiro onde essas demandas sociais crescentes convivem com os problemas históricos do subdesenvolvimento econômico, da pobreza e da desigualdade social. Por outro lado, há uma pressão interna por fiscalizações deste tipo oriundas da sensação generalizada por parte dos membros e servidores dos TCs de que a mera análise do cumprimento de indicadores legais de gastos e outros aspectos de conformidade não produzem impacto nos serviços públicos prestados por seus entes jurisdicionados e, por consequência, suas ações de fiscalização acabam não fazendo diferença na vida dos cidadãos.

Neste contexto, os TCs estão reestruturando os seus processos de trabalho de modo a direcionar suas fiscalizações para o resultado das políticas públicas. Isso é feito das mais diversas formas: criam-se unidades de fiscalização específicas, constroem-se painéis de indicadores para acompanhar as políticas, orienta-se a fiscalização para temas socialmente sensíveis (educação, saúde, segurança, transporte coletivo, …), entre outras medidas que muitas vezes não se conversam e, se construídas a esmo e/ou sem um objetivo claro, por melhor que seja a intenção, podem levar a um desperdício de recursos humanos e materiais.

Para completar, entre a pressão por fiscalizar políticas públicas e a necessidade emergente de reestruturar os processos internos para realizá-la, os TCs enfrentam algumas questões conceituais quando iniciam esse processo: Aspectos de auditoria de conformidade se encaixam em fiscalizações com este objeto? A fiscalização de políticas públicas necessariamente redunda em uma auditoria operacional? Auditoria operacional e avaliação de políticas públicas são a mesma coisa? Em que se diferem?

Para responder a esses questionamentos, é necessário adentrar nos aspectos teóricos de modo a criar um esboço de marco conceitual para a fiscalização de polícias públicas, que é o objetivo deste breve ensaio. Para isso, faz-se uma breve revisão dos conceitos do objeto desta fiscalização (política pública) e os tipos de fiscalização disponíveis para realiza-la (auditorias de conformidade e operacional e avaliação de políticas públicas), por fim, analisa-se qual é o tipo mais adequado para a fiscalização desse objeto.

O conceito de políticas públicas

            Não há um conceito único para definir o que são políticas públicas. Eugênio Lahera Parada em seu ensaio sobre a relação entre a política e as políticas públicas assim a define:

Uma política pública de excelência corresponde àquelas cadeias de ação e fluxos de informação relacionados com um objetivo político definido democraticamente […]. Uma política pública de qualidade incluirá orientações ou conteúdos, instrumentos ou mecanismos, definições ou modificações institucionais e a previsão dos seus resultados. (Parada, 2006. p. 68. Grifos nossos).

Sob uma perspectiva gerencial, McLaughlin e Jordan trazem uma definição de programa que pode ser estendido para as políticas públicas:

Um programa pode ser descrito como uma transformação intencional de recursos específicos (insumos) em certas atividades (processos) para produzir efeitos esperados (resultados), dentro de um contexto específico. (MacLaughlin; Jordan, 2015. p. 55. Grifos nossos).

Percebe-se que tanto do ponto da ciência política, quando do da administração, a política pública é percebida como uma série de ações para se chegar a um determinado resultado pretendido.

Historicamente, desde a Antiguidade Clássica até hoje, o Estado é a instituição socialmente construída para atender às demandas sociais que os agentes particulares isolada e desordenadamente não conseguem resolver. Ao longo da história, estas demandas sociais vão mudando e diversos grupos sociais se organizam e encontram formas para apresentar, pressionar e/ou impor as suas demandas ao Estado, que enfrenta, em maior ou menor grau, restrições orçamentárias para atende-las.

Não poderia ser diferente no Estado capitalista moderno. Na era do capitalismo comercial dos séculos XVI a XVIII, sua função se restringia basicamente a atender aos interesses nacionais de defesa e justiça (em linhas gerais, manter a coesão social) e da burguesia comercial na regulação da atividade econômica (nesta época, ainda restrita a licenças para explorar territórios e legislação reguladora do comércio internacional). Com a emergência do capitalismo industrial a partir do século XVIII e XIX e do capitalismo financeiro a partir do século XX, surgem, por um lado, a burguesia industrial e financeira com novos interesses de regulação econômica (proteção à indústria nascente, regulação da atividade bancária, administração da dívida pública, intervenção em setores considerados estratégicos como a infraestrutura, entre outros)  e, por outro, uma classe trabalhadora organizada que começou a demandar ações de promoção do bem-estar social (previdência social, assistência aos desamparados, educação, saúde,…). O desenvolvimento econômico dos últimos séculos trouxe consigo um certo grau de destruição do meio ambiente, o que nas últimas décadas tem causado uma série problemas, em resposta a isso a questão da proteção do meio ambiente também tem entrado na pauta de políticas públicas.

Atualmente, no século XXI, uma síntese de todas essas políticas públicas é a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), que traz os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Trata-se de um compromisso mundial com a promoção do desenvolvimento social, econômico e ambiental dentro de um contexto institucional democrático.

Vale reforçar que essas demandas dos diferentes grupos sociais vão surgindo, se modificando e se tornando mais complexas ao longo da história e, paralelamente, a forma de agir e o tamanho do Estado também passam por inovações, modificações e complexificação. A transformações dessas necessidades sociais em políticas públicas com o objetivo de atende-las é um objeto de estudo clássico da ciência política. Mas, implantada uma política pública, como transformar essas ideias em ações concretas?

Para atender a essas diversas demandas sociais, o Estado se organiza e estabelece políticas públicas com determinados objetivos para atende-las. Para implantá-las, é necessário que o Estado mobilize recursos financeiros, materiais e humanos (os insumos) e os coloque em atividade (por meio de processos), que chegarão ao público-alvo dessa política na forma de produtos e serviços. Estes terão uma série de efeitos sobre o público-alvo a curto e médio prazos (os resultados) que se espraiarão para a população em geral (ou para além do público-alvo) a longo prazo (o impacto). Toda essa cadeia de eventos ocorre sob um determinado contexto social, econômico e institucional que a influenciará positiva ou negativamente.

Esses são os elementos componentes de toda política pública, seja qual for a demanda social que queira atender ou objetivo estabelecido. Esta  cadeia de elementos é conhecida na teoria da administração como modelo lógico.

Partindo disso, consegue-se identificar diferentes abordagens para fiscalizar as políticas públicas. Os pronunciamentos profissionais da INTOSAI listam três: (i) auditoria de conformidade; (ii) auditoria operacional; e (iii) avaliação de políticas públicas.

Auditoria de conformidade

O conceito de auditoria de conformidade é dado pelo parágrafo 12 da NBASP/ISSAI 400- Princípios de Auditoria de Conformidade, que a descreve como uma “avaliação independente para determinar se um dado objeto está em conformidade com as normas aplicáveis identificadas como critérios”.

Ao longo da cadeia de ações que envolve a produção de políticas públicas, a auditoria de conformidade é bastante comum quando o objeto da fiscalização se concentra na transformação dos insumos orçamentários em insumos físicos e humanos. Este é o caso das fiscalizações que como objetivo verificar a legalidade de processos de compras públicas, de contratação de serviços, de concursos públicos, entre outros. A auditoria de conformidade também aparece na fiscalização da implantação ou não de determinados processos que o Estado está obrigado a estabelecer por alguma lei ou outro regulamento, como é o caso das fiscalizações de validação de pontos do questionário do Índice de Efetividade da Gestão Municipal (IEG-M).

Esse é o tipo de fiscalização é o mais comum no âmbito dos Tribunais de Contas e, a princípio, não há nada de errado de também haver algum enfoque de conformidade na fiscalização de políticas públicas, desde que seja uma fiscalização com um objetivo bem definido. Neste sentido, cabe aos Tribunais de Contas escolher entre dois caminhos: ou se continua fazendo uma auditoria de conformidade “alienada” (buscar a conformidade pela conformidade), ou se começa a pensar a auditoria de conformidade olhando para o resultado das políticas públicas que são afetadas pela fiscalização (verificar se aqueles aspectos de conformidade que estão sendo fiscalizados contribuem ou não para a melhoria o resultado da política pública). Indo para o segundo caminho, a fiscalização de políticas começa a ganhar aspectos de uma auditoria operacional.

Auditoria operacional

De acordo com o parágrafo 9 da NBASP/ISSAI 300- Princípios de Auditoria Operacional, trata-se de um:

Exame independente, objetivo e confiável que analisa se empreendimentos, sistemas, operações, programas, atividades ou organizações do governo estão funcionando de acordo com os princípios de economicidade, eficiência e efetividade (eficácia) e se há espaço para aperfeiçoamento. (NBASP/ISSAI 300. Grifos nossos).

Partindo do modelo lógico, verifica-se que as dimensões de desempenho analisadas pela auditoria operacional são análises das relações entre os elementos das políticas públicas:

  • A economicidade é a relação entre os recursos físicos e humanos utilizados e o montante de recursos orçamentários despendidos para comprá-los ou contratá-los, é uma espécie de análise de custo dos insumos. O seu objetivo é, mantendo um padrão de qualidade, encontrar espaço para minimizar custos para sobrar mais recursos orçamentários. Para uma boa análise de custos, é necessário que a informação contábil disponível seja confiável e de qualidade, reforçando a importância também da auditoria financeira para a fiscalização de políticas públicas;
  • A eficiência é a relação entre os insumos (os orçamentários e/ou os recursos físicos e humanos) e os produtos e serviços resultantes das ações desses insumos. A partir da mensuração da eficiência, a relação insumo-produto, o seu objetivo é, também mantendo um padrão de qualidade, encontrar formas para minimizar a quantidade de insumos para uma dada quantidade de produtos ou maximizar a quantidade de produtos dada a quantidade de insumos;
  • A efetividade/eficácia, segundo a definição da NBASP/ISSAI 300, é a mensuração do grau de cumprimento das metas de produção de produtos e serviços públicos e dos seus efeitos imediatos no público-alvo desses produtos e serviços, trata-se da relação entre os objetivos da política pública o nível de produto e os resultados alcançados por ela. O seu objetivo é identificar as causas do não atingimento das metas estabelecidas e encontrar meios para atingi-las.

Além desses três critérios consagrados nas normas de auditoria operacional, há outros dois que vem ganhando destaque e que também podem ser utilizados para avaliar o desempenho da gestão pública:

  • O esforço, que é avaliação da quantidade de insumos alocados e do grau de implantação dos processos que são necessários para entregar uma política pública de qualidade. O seu objeto é encontrar lacunas na ação do gestor que possam estar prejudicando a quantidade ofertada e a qualidade dos serviços públicos prestados.
  • A equidade, que é uma extensão do princípio da efetividade/ eficácia, no sentido que analisa se os produtos estão sendo ofertados ao público-alvo da política pública (e alcançando os resultados esperados) de modo que se diminua (ou não se aumente) a desigualdade social, ou entre palavras, para verificar se a política pública está conseguindo diminuir a desigualdade. Este é um tema emergente a nível mundial, como demonstram a Agenda 2030 e a Declaração de Moscou da INTOSAI.

Na análise de cada uma dessas cinco dimensões de desempenho de uma política pública, o objetivo da auditoria operacional será sempre identificar as causas do mau desempenho e emitir recomendações que contribuam para o seu aprimoramento. Quando essas recomendações passam pela implantação de processos que possam ser normatizados, a auditoria operacional inclusive oferece os critérios para uma futura auditoria de conformidade que olha para o resultado das políticas públicas.

Desse modo, temos dois instrumentos para fiscalizar as políticas públicas: a auditoria de conformidade, que irá verificar se a política pública está seguindo as normas que lhe são cabíveis, e a auditoria operacional, que irá verificar se a política pública pode ser melhorada. Entretanto podem surgir outras questões, tais como: A política pública implantada é suficiente para atender às demandas sociais existentes? Ou ainda, a política pública está tendo impacto na sociedade, para além do público que é por ela atendido? Essas são perguntas que são respondidas por meio de um terceiro instrumento: a avaliação de políticas públicas.

Avaliação de políticas públicas

De acordo com a GUID 9020- Avaliação de Políticas Públicas, este tipo de trabalho é:

O exame independente que se realiza para determinar a utilidade de dita política. Uma avaliação analisa, da maneira mais sistemática possível, os objetivos, a execução, os produtos, os resultados e o impacto socioeconômico de uma política e mede o seu desempenho com a finalidade de avaliar finalmente sua pertinência ou adequação. (GUID 9020. Grifos nossos).

A avaliação de políticas públicas de certa forma abarca a auditoria operacional (uma vez que também pode analisar suas dimensões de desempenho: economicidade, eficiência, eficácia, esforço e equidade) e vai além ao analisar outras duas dimensões: (i) a pertinência da política pública, que verifica se os objetivos de uma política pública são coerentes com as necessidades sociais e se eles são suficientes para atende-las; e (ii) a utilidade da mesma, que verifica se os resultados da política pública foram além do seu público-alvo e de que forma eles impactaram a realidade social, econômica e ambiental que se pretendia transformar com ela.

Nos Tribunais de Contas do Brasil, este tipo de fiscalização ainda está em processo de implantação, mas tenderá a se tornar mais comum conforme as políticas públicas forem se tornando o seu principal objeto de fiscalização.

Considerações: O que fazer?

Ao final deste ensaio, com a apresentação do conceito de políticas públicas e dos três instrumentos disponíveis para fiscaliza-las, resta a pergunta: e os Tribunais de Contas, que caminhos devem seguir para fiscalizar políticas públicas?

Antes de mais nada, voltando aos Princípios Fundamentais de Auditoria do Setor Público constantes na NBASP/ISSAI 100, tudo começa com uma fiscalização com um objetivo claro e bem definido. Isto passa por uma delimitação clara do seu objeto e uma definição precisa dos critérios que serão utilizados para analisa-lo. Dados o objeto e os critérios, é que se descobre o tipo de trabalho que se irá realizar: auditoria de conformidade, auditoria operacional, uma mistura das duas, ou até mesmo uma avaliação de políticas públicas. E não o contrário.

O trabalho de fiscalização de políticas públicas provavelmente começará com a fiscalização de aspectos de conformidade, tais como a verificação do cumprimento de normativos reguladores. Pode parecer pouco, mas já uma evolução se comparada a uma auditoria de conformidade alienada, que não olha para o resultado da política pública.

Conhecendo melhor a estrutura da política pública fiscalizada, consegue-se realizar uma fiscalização de seus aspectos operacionais, analisando as diversas dimensões de desempenho da gestão pública aqui mencionadas e encontrando oportunidades de melhoria. No futuro, com o conhecimento acumulado sobre as políticas públicas oriundo dessas auditorias de conformidade e operacionais, poderemos avançar para a avaliação da sua relevância e utilidade.

Deste modo, mais importante do que começar a fazer uma auditoria operacional ou avaliação de políticas públicas como um objetivo “a priori”, é estruturar as fiscalizações dos Tribunais de Contas dando atenção aos objetos de maior relevância econômica, social e ambiental, como bem pontua o documento mais recente da INTOSAI – a Declaração de Moscou, e realizá-las com um grau elevado de profissionalismo e rigor metodológico, observando as normas de auditoria em seus trabalhos. Assim, as políticas públicas passam a ser o principal objeto de fiscalização dos Tribunais de Contas que, ao longo do tempo, vão aprimorar as abordagens para fiscalizá-las.

Referências bibliográficas
INTOSAI. GUID 9020- Evaluation of Public Policies. Disponível em: <http://www.issai.org/>
IRB. NBASP 100- Princípios Fundamentais de Auditoria do Setor Público. In: Normas Brasileiras de Auditoria do Setor Público. Nível 2- Princípios Fundamentais. Disponível em: <https://irbcontas.org.br/nbasp/>
IRB. NBASP 300- Princípios de Auditoria Operacional. In: Normas Brasileiras de Auditoria do Setor Público. Nível 2- Princípios Fundamentais Disponível em: <https://irbcontas.org.br/nbasp/>
IRB. NBASP 400- Princípios de Auditoria de Conformidade. In: Normas Brasileiras de Auditoria do Setor Público. Nível 2- Princípios Fundamentais Disponível em: <https://irbcontas.org.br/nbasp/>
McLaughlin, J. Jordan, G. Using Logic Models. In: Newcomer, K. E. Hatry, H. P. Wholey, J. S. Handbook of Practical Program Evaluation. 4th Edition. Hoboken: John Wiley & Sons, 2015.
Parada, E. L. Política y Políticas Públicas. In: Saravia, E. Ferrarezi, E. Políticas Públicas: Coletânea. Vol. I. Brasília: ENAP, 2006.