“Políticas Públicas e equidade –
O papel das fiscalizações dos Tribunais de Contas”
*Nelson Nei Granato Neto, gerente de Políticas Públicas e Analista de Controle Externo do TCEPR
“O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo”. Esta é uma manchete de jornal comum ao longo do tempo. É aquela velha história: uma parcela (pequena) da população concentra em suas mãos a maior parte da riqueza do país, enquanto a (imensa) maioria da população vive com poucos recursos, às vezes insuficientes para se ter uma vida minimamente digna. Entre um polo e outro, às vezes surge uma mal definida “classe média”, que não poderia (nem deveria) deixar de ser considerada quando se analisa este problema.
A desigualdade de renda anda junto com a desigualdade social. Os mais pobres têm condições de vida piores, menos acesso a serviços públicos de qualidade, menos oportunidade de bons empregos, estão mais vulneráveis a situações de crise econômica e catástrofes ambientais (e pandemias!), uma situação que perpetua a situação de pobreza geração após geração. É o círculo vicioso, como sugere a teoria da causação cumulativa proposta pelo economista sueco Gunnar Myrdal (1968), um dos primeiros a estudar o problema da desigualdade, em seu livro “Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas”.
Neste componente social da desigualdade há, ainda, um segundo aspecto: a pobreza e a marginalização têm sexo, cor, etnia, identidade sexual e de gênero, idade, origem de nascimento, entre outros inúmeros aspectos. Há uma ampla gama de setores da sociedade que são mais vulneráveis que outros para a pobreza, a discriminação e a exclusão de acesso a serviços públicos e oportunidades.
A desigualdade social e econômica é, também, um problema político, como aponta o economista francês Thomas Pikety (2014) em seu “O Capital no Século XXI”. De acordo com esse autor, as desigualdades de oportunidade impedem o pleno funcionamento da meritocracia, uma vez que os mais pobres não têm condições de competir em pé de igualdade com os mais ricos. Considerando o mérito como um dos pilares da democracia ocidental, este autor sustenta que a desigualdade persistente e crescente em um dado país corrompe a democracia e abre brechas para saídas autoritárias.
E se a desigualdade é, simultaneamente um problema econômico, social e político, ela também é uma questão de políticas públicas. Trata-se de ter no Estado um agente formulador e executor de ações capazes de diminuir as inúmeras formas de aparição da desigualdade. Ou seja, seguir o princípio da equidade, preocupação de Aristóteles desde a Grécia Antiga na sua “Ética a Nicômaco”, que é o de tratar os iguais de forma igual e os desiguais na medida de sua desigualdade.
A nível internacional, temos isso expressado no compromisso mundial da Agenda 2030, dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), cujo lema é “Não deixe ninguém para trás”. Na leitura de cada um de seus 17 objetivos, os quais se desdobram em metas e ações, percebe-se o cuidado em recomendar políticas públicas de caráter universal (que atinjam todos) e que tenha por objetivo dirimir as desigualdades (que incluam os grupos excluídos).
A nível nacional, temos a Constituição de 1988, a nossa lei magna, que em seu art. 3º coloca a questão da combater as desigualdades e discriminações de todos os tipos como objetivos fundamentais da República[1]. Além disso, as leis ordinárias e complementares que normatizam as políticas públicas e as inúmeras políticas e planos nacionais para diversos setores de atuação é possível identificar a preocupação com a questão da redução da desigualdade, que é uma responsabilidade conjunta dos gestores federais, estaduais e municipais.
E se há ação do Estado para combater a desigualdade, há fiscalização por parte das entidades fiscalizadoras superiores do mundo inteiro, entre as quais os Tribunais de Contas brasileiros. A diretriz 9 da Declaração de Moscou (2019) é específica para essa questão: as entidades fiscalizadoras do mundo inteiro estão encorajadas pela INTOSAI para colocar a equidade e a inclusão social como objetos nos seus trabalhos[2], como um dos meios para reforçar o impacto das EFS na vida das pessoas. Além do apelo internacional, os Tribunais de Contas brasileiros também são incentivados por suas entidades representativas a abordar essa questão em suas fiscalizações, como pontua a diretriz 2 da Carta de Foz do Iguaçu (2019)[3].
O problema está posto e missão de enfrenta-lo, idem. Resta uma pergunta: Como os Tribunais de Contas podem fazer isso? A primeira resposta: Não é uma tarefa fácil.
O “olhar para o resultado”, que é o primeiro passo para a fiscalização de políticas públicas, também é necessário para fiscalizar a equidade – afinal trata-se de uma dimensão de desempenho da administração pública. Assim, há a necessidade de se estabelecer fiscalizações com o objetivo de verificar o quão inclusiva é uma política pública em determinados aspectos do resultado (acesso, qualidade) e identificar as causas de uma política bem ou mal sucedida nessa missão e encontrar o espaço que há para o aprimoramento da gestão pública para enfrentar esses problemas[4]. Eis alguns exemplos (nem um pouco exaustivos) de fiscalizações com este objetivo:
Grande Tema | Objetivo (analisar as diferenças de…, e identificar suas causas) |
Educação Básica | *Acesso à creche entre as populações rural e urbana *Proficiência em matemática entre meninas e meninos *Evasão escolar entre alunos mais pobres e mais ricos *Proporção de jovens com ensino fundamental completo entre pretos/pardos e brancos/amarelos […] |
Assistência Primária em Saúde | *Taxa de vacinação entre mais pobres e mais ricos *Acesso a consultas médicas entre homens e mulheres *Expectativa de vida dos pretos/pardos e brancos/amarelos […] |
Trabalho e renda | *Desemprego entre os mais jovens e os mais adultos […] |
Os exemplos acima estabeleceram objetivos relacionados a encontrar diferenças no grau de acesso e do nível de qualidade entre grupos sociais, mas também poderia ser verificar o alcance e a qualidade de serviços específicos direcionados para grupos específicos que demandam uma atenção especial, como, por exemplo, o atendimento escolar especializado para a população portadora de necessidades especiais e o atendimento primário à saúde da população em situação de rua.
Outro passo é avaliar a disponibilidade de indicadores de equidade, aqui entendida como a igualdade de oportunidade de acesso aos serviços públicos e qualidade do serviço utilizado para os mais diversos grupos sociais. Isto pressupõe a identificação, a mensuração e o acompanhamento de indicadores desagregados por grupos sociais (mais pobres, mulheres, pretos e pardos, entre outros) e aqui surge um problema: como obter estes indicadores?
A nível nacional e estadual, as pesquisas demográficas como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua oferecem uma série de informações sobre educação, trabalho, renda e moradia que permitem essa desagregação. A nível municipal, dependemos do Censo Demográfico, realizado a cada dez anos (o próximo está previsto para 2021). Isto limita, mas não impossibilita a análise da equidade em políticas públicas municipais: pode-se fazer uma transposição dos problemas estaduais para o nível municipal e utilizar outros indicadores disponíveis que medem a existência da desigualdade em geral (como o Índice de Gini).
Por fim, chegamos ao planejamento e execução de fiscalizações com este objetivo. Aqui restam dois conselhos:
(i) Como as dimensões de avaliação de equidade são inúmeras, é necessário estabelecer prioridades para não se perder[5]: o Tribunal de Contas não vai resolver todos os problemas da gestão pública, é nosso trabalho identificar a existência desses problemas e atuar naqueles mais urgentes e que temos mais capacidade legal, operacional e de conhecimento de analisa-los. Especialmente quanto ao grau de conhecimento acerca do objeto, reforça-se que ele não é constante ao longo do tempo, pelo contrário, deve ser aprimorado continuamente[6], tanto por meio do conhecimento adquirido no curso das próprias fiscalizações ao longo do tempo, quanto por meio de capacitações.
(ii) Apesar da questão da desigualdade social ser histórica e problemática no Brasil, a sua análise pelos Tribunais de Contas é nova. Assim, seria difícil começar com uma fiscalização com um objetivo exclusivamente orientado para avaliar a equidade de uma política pública. Assim, talvez o melhor caminho seja de, no contexto de uma dada fiscalização de política pública, elaborar pelo menos uma questão de auditoria relacionada a algum aspecto de equidade e, assim, ir ganhando experiência com esta temática.
É um longo caminho que temos pela frente, mas vamos dar os primeiros passos juntos! Compartilhe com os colegas dos seu e dos demais Tribunais de Contas experiências fiscalização com este objetivo para discutirmos o que funcionou ou não e, assim, aprimorarmos constantemente nossos trabalhos.
[1] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[2] Princípio 9: As EFS deveriam considerar encontrar mais formas de abordar o tema da inclusão ao realizar suas auditorias (fiscalizações) considerando que este é um ponto chave da Agenda 2030, que tem como princípio não deixar ninguém para trás.
[3] Princípio 2: Os Tribunais de Contas devem contribuir para o aprimoramento permanente da atuação do Estado como promotor de políticas públicas
Parágrafo 12: Os Tribunais de Contas devem Analisar constantemente o contexto socioeconômico em que as entidades e os órgãos estão inseridos, com o objetivo de realizar fiscalizações que contribuam para o alinhamento das políticas públicas às prioridades nacionais e internacionais, contidas na Constituição e leis que regulamentam seus dispositivos e na Agenda 2030 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).
[4] NBASP/ISSAI 300.9- Definição de auditoria operacional.
[5] NBASP/ISSAI 100. Princípios 41 (materialidade) e 46 (avaliação de risco e análise de problema).
[6] NBASP/ISSAI 100. Princípio 39 (habilidades necessárias); NBASP/ISSAI 40/140. Elemento 4 (gestão de recursos humanos/ capacitação)
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultura, 1991.
MYRDAL, Gunnar. Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas. Rio de Janeiro: Saga, 1968.
PIKETY, Thomas. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.