*Texto de Crislayne Cavalcante (Coordenação IRB) e Vitor Maciel (TCMBA e assistente técnico do IRB na CTCONF)
Publicada em 15/03/21, a Emenda Constitucional 109/21, originária da promulgação da PEC 186/2019 (PEC Emergencial), introduziu uma série de disposições relevantes ao ordenamento jurídico brasileiro, notadamente no campo do Direito Financeiro. E, portanto, reclama das Cortes de Contas do Brasil um importante aprofundamento nos estudos dos aspectos fiscais, dos controles públicos e outras questões atinentes ao Direito e à atividade de Controle Externo de modo geral. A Emenda traz mudanças em caráter permanente e outras de caráter provisório a exemplo dos impactos decorrentes da decretação nacional de calamidade pública produzida pela COVID-19. O fato é que, independentemente da situação ensejadora da aplicação dos dispositivos dispostos na Emenda, todos são merecedores de igual rigor na ótica de fiscalização e controle do Tribunais de Contas do Brasil.
Sendo a PEC anterior a pandemia (2019), indubitavelmente, não se vislumbrou nas primeiras discussões parlamentares, o advento do auxílio emergencial, mas essencialmente a aplicação dos chamados “gatilhos “, ou seja, medidas automáticas para ajuste fiscal dos entes da federação em desequilíbrio fiscal. Com a transmutação do projeto original, em razão dos efeitos socioeconômicos produzidos pela pandemia, os governos e TCs estão sendo alertados, acerca da imperiosa necessidade de revisitar seus métodos de: Controle da Execução de Despesa e Análise dos requisitos para Controle Fiscal. Como se vê, trata-se de mecanismos inibidores para o crescimento das despesas permanentes, no âmbito dos orçamentos dos entes da federação.
Além disto, a norma instituiu regras transitórias que envolve dentre outros aspectos: a redução de benefícios tributários; a desvinculação parcialmente do superávit financeiro de fundos públicos; a suspenção de condicionalidades para realização de despesas com concessão de auxílio emergencial residual para enfrentamento dos impactos da COVID-19; e trouxe novas atribuições aos Tribunais de Contas. Neste ponto, cabe também acrescentar a urgente necessidade das cortes refletirem sobre a necessidade de criar: novas métricas de análises e avaliação das metas de resultados nominal e primário, monitoramento da aplicação da Regra de Ouro, requisitos para emissão de certidões (verificações dos limites /condições para contratação das operações de crédito), realização de auditorias específica a dívida pública, criação de novos indicadores de avaliação e afins.
De acordo com Vice Presidente de Auditoria do IRB, Cons. Edilberto Pontes (TCECE), quem apresentou a relevância do tema em reunião do CNPTC no dia 15/06/21: “A EC nº. 109/21 além de alterar regras de Direito Financeiro trouxe novas atribuições aos Tribunais de Contas. E, o impacto das mudanças das regras dos limites trazidos pelo artigo 167-A (95%) envolve grande quantidades de Estados e Municípios conforme levantamento do período de 2018 a 2020: no âmbito estadual, em 2018, 14 Estados estavam acima do limite de 95% (AC, BA, CE, DF, GO, MA, MG, PE, PI, RJ, RS, SC, SE, TO). Em 2019, o número reduziu para 10 (CE, DF, GO, MG, PE, PI, RN, RS, SE, SP). E, no ano passado, 3 (MG, RN, RS). Já no âmbito municipal, em 2018, 2.583 Municípios estavam com problemas de superar o limite de 95% da relação de despesas e receitas; em 2019 reduziu para 1.931 Municípios e em 2020, 934.”
Entenda as principais mudanças que impactam nas atividades dos Tribunais:
TCs serão responsáveis por declarar se medidas de ajuste fiscal estão sendo implantadas e cumpridas
De acordo com o artigo 167-A da EC nº. 109/21, no âmbito dos Estados, DF e Municípios, se apurado que a relação entre as despesas correntes e as receitas correntes, do período de 12 (doze) meses, superar 95%, é facultado aos entes aplicar mecanismos de ajustes ficais de vedação de concessão de alguns benefícios ou ações na área de atos de pessoal (incisos I a VI); de criação ou reajustes de despesas obrigatórias (VII e VIII); de aumento de dívida (IX); de benefícios tributários (X).
Caso o ente supere o limite de 95% referido acima, e, enquanto não adotar as medidas de ajustes fiscais citadas, não poderá receber garantias de outro ente da Federação, nem tomar operação de crédito de outro ente, inclusive refinanciamentos ou renegociações. E, para atestar se as medidas de ajustes fiscal foram adotadas, os Tribunais de Contas é quem tem atribuição de emitir declaração.
A Emenda não fixou um prazo definitivo para a vigência das proibições (art. 167-A, §6º), ou seja, uma vez ultrapassado os 95% (noventa e cinco por cento) da relação entre as despesas correntes e receitas correntes, as vedações deverão perdurar enquanto permanecer a situação. E, cabe aos Tribunais de Contas declararem o cumprimento das medidas de ajuste fiscal, o que inclui, dentre outros aspectos se atentar aos parâmetros para acompanhamento dos indicadores citados no artigo 167-A.
Vale ressaltar, a imperiosa necessidade do efetivo alinhamento entre as cortes de contas do Brasil, acerca de conceitos como: Despesa Primária, Despesa Obrigatória de Caráter Continuado, por exemplo. Tendo em vista, a relevância de tais institutos na implantação de critérios definidores à implementação de medidas de ajuste fiscal e Auditoria das Contas Públicas.
Daí extrai-se, a relevância do Acordo de Cooperação Técnica (ACT), cujo Grupo de Trabalho 1 – MDF do Acordo de Cooperação Técnica n. 01/18 já tem realizado debates a fim de harmonizar os critérios para o cálculo desta relação entre despesas e receitas.
Saldos financeiros deverão ser restituídos ao caixa único do Tesouro
Outra atribuição aos Tribunais de Contas, trata-se de atribuição na sua função administrativa de, ao final do seu exercício financeiro, se houver saldo financeiro decorrente dos recursos recebidos pelos duodécimos, o saldo deverá ser devolvido ao caixa único do Tesouro ou terá seu valor deduzido das primeiras parcelas duodecimais do exercício seguinte.
Sobre este dispositivo, haja vista a publicação da Emenda Constitucional em março de 2021, e como não houve regulamentação sobre o início de aplicação da regra para o saldo do exercício de 2020 ou somente para o saldo de 2021, muitas dúvidas estão surgindo e alguns Tribunais já até receberam pedidos de consulta sobre o tema.
Foi o caso do TCEES, que julgou no dia 15/06/21, a Instrução Normativa nº. 00074/2021 decidindo, que dispõe sobre a restituição do saldo financeiro de que trata o artigo 168, § 2º, da Constituição da República Federativa do Brasil, introduzido pela Emenda Constitucional 109, de 15 de março de 2021. A IN resolveu que o saldo financeiro de recursos oriundos do repasse de duodécimos a Órgãos e Poderes do Estado e dos municípios do Estado do Espírito Santo, deverá ser restituído ao caixa único do Tesouro do respectivo ente federativo ou deduzido das parcelas duodecimais do exercício seguinte. Acesse a íntegra da IN 74 aqui.
Fiscalização da trajetória sustentável da dívida pública
Sempre que o ente público busca recursos externos para cobrir despesas que não consegue suportar com suas próprias receitas, ele contrai dívida pública. Estas obrigações financeiras podem ocorrer por meio de lei, contratos, convênios, tratados ou realização de operações de créditos.
Desde o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, a fiscalização da dívida pública é atribuição dos Tribunais de Contas (art. 59, LRF). Mas, com as mudanças da Emenda Constitucional nº 109/21, os Tribunais passarão a ter que fiscalizar também a trajetória sustentável da dívida pública que inclui: indicadores de apuração da sustentabilidade da dívida, níveis de compatibilidade dos resultados fiscais com a trajetória da dívida; trajetória de convergência do montante da dívida com os limites definidos em legislação; medidas de ajuste, suspensão e vedações; planejamento de alienação de ativos com vistas à redução do montante da dívida.
Pela Resolução nº 1/21 da ATRICON, que trata de diretrizes para a apreciação do parecer prévio nas contas do Chefe do Poder Executivo e monitoramento das deliberações; é diretriz que o conteúdo mínimo do parecer contenha a apreciação da execução orçamentária, financeira e fiscal, o que inclui a análise sobre os limites da dívida pública e do balanço geral (item 38.1, II e III c/c 38.4.4 – Executivo Estadual e itens 38.1, II e III c/c 38.5 – Executivo Municipal), com a metodologia de normas de auditoria financeira (item 38.4.2). Logo, com o advento da EC nº. 109/21, haverá uma ampliação do escopo de análise da dívida pública para considerar a trajetória sustentável da dívida.
Além da análise da trajetória sustentável da dívida no parecer prévio, os Tribunais de Contas podem realizar a fiscalização por meio de acompanhamentos, levantamentos, monitoramentos, inspeções e auditorias, tendo por base as metodologias das normas internacionais de fiscalização do setor público (IFPP- INTOSAI e, sua tradução ao português, NBASP- IRB)
O que os representantes do IRB e ATRICON na CTCONF pensam sobre a EC?
A Câmara Técnica de Normas Contábeis e de Demonstrativos Fiscais da Federação-CTCONF é uma rede colegiada, ligada ao Ministério da Economia, com o objetivo de subsidiar a elaboração, pela Secretaria do Tesouro Nacional, das normas gerais relativas à consolidação das contas públicas e dos Manuais de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP) e de Demonstrativos Fiscais (MDF). Esta Câmara Técnica também acaba por auxiliar os órgãos públicos na implementação e interpretação da Lei de Responsabilidade Fiscal enquanto não for criado por lei o Conselho Fiscal previsto na LRF.
O IRB e a ATRICON participam da CTCONF, representando o Controle Externo Brasileiro, por meio de representantes titulares, suplentes e assistentes técnicos. Confira aqui a relação dos membros.
Por debaterem questões sobre Direito Financeiro, alguns destes representantes avaliaram o impacto da EC nº 109/21 nas atividades dos Tribunais de Contas:
O Cons. Inaldo da Paixão, representante titular do IRB na CTCONF, relata: “A Emenda Constitucional nº 109, pelo simples observar da sua extensa ementa, por si só já demonstra o vasto alcance das diretrizes ali estabelecidas, em especial no âmbito do direito financeiro, inclusive com impacto nas atividades dos Tribunais de Contas, especificadamente pelo disposto no parágrafo 16 do art. 37 e também no parágrafo 16 do art. 165. Pelo que se depreende com o advento desta Emenda Constitucional, os Tribunais de Contas deverão acompanhar a ‘avaliação das políticas públicas’ (parágrafo 16 do art 37), pois cabe às três leis orçamentárias (LOA, LDO e PPA) observarem os referidos resultados do ‘monitoramento e da avaliação das políticas públicas previstos no § 16 do art. 37 desta Constituição’. Dessa forma, competirá às referidas Casas de Controle um maior aprimoramento das auditorias operacionais, que poderão servir de base para a consecução das leis orçamentárias quando da sua elaboração”.
O assistente técnico do IRB na CTCONF, Jorge de Carvalho (TCMSP), ressalta a atenção que os auditores terão na verificação do cálculo da relação de limite de gastos:
“A Emenda Constitucional nº 109, de 15 de março de 2021, promoveu substanciais modificações em importantes critérios frequentemente utilizados pelos Auditores de Controle Externo no exercício das suas funções fiscalizatórias, razão pela qual deve ser minuciosamente estudada por estes profissionais. Destaco dois pontos relacionados ao cálculo de limites: – a alteração da metodologia de apuração dos gastos com pessoal do Poder Legislativo Municipal, estabelecida pelo art. 29-A, que passa a incluir os gastos com inativos e pensionistas a partir de 2025 (primeira legislatura municipal após a edição da Emenda) – despesas estas que estavam explicitamente excluídas na redação anterior do artigo –; e – instituição de um novo limite voltado à preservação do equilíbrio operacional dos Entes Estaduais, Distrital e Municipais, apurado por meio do cotejamento entre despesas e receitas correntes (art. 167-A). Caso a relação entre estes ultrapasse 95% no período de 12 meses, os Poderes terão a faculdade de instituir uma série de mecanismos de ajuste fiscal, sendo crucial o acurado exame do Tribunal de Contas competente pois, apenas mediante declaração deste, será possível a obtenção de garantias e a contratação de operações de crédito em tal cenário”.
Leandro Menezes (TCEPR), também assistente técnico do IRB na CTCONF, reforça: “”A EC nº. 109/21, embora composta de poucos artigos, trouxe alterações significativas que impactam tanto os órgãos de execução como os órgãos de controle. Seus dispositivos têm sido objeto de debates nos grupos técnicos e no GT1 do Acordo de Cooperação técnica com a STN e Tribunais de Contas dada a importância de seus dispositivos.”
Os impactos da EC 109/21 para os Tribunais de Contas segundo especialistas
Para a elaboração da presente matéria, o Instituto Rui Barbosa buscou contato com alguns especialistas para tratar dos principais desafios e impactos para os Tribunais de Contas com a EC 109/21. Ricardo Rocha de Azevedo, Professor da Faculdade de Ciências Contábeis (FACIC) e Universidade Federal de Uberlândia (UFU), disponibilizou sua perspectiva no texto em que apresenta o papel fundamental dos Tribunais de Contas com a chegada da EC 109/2021.
Confira a íntegra do texto do professor abaixo:
Primeiro, os mecanismos de ajuste fiscal criados pela EC 109/2021 disparados (facultado aos entes, mas de adoção obrigatória no caso de estado de calamidade) pelo gatilho de 95% na relação entre despesas e receitas correntes (art. 167-A) remete aos Tribunais de Contas o acompanhamento (§ 6º). Nesses casos, medidas fiscais devem ser tomadas pelos entes, cujo acompanhamento é essencial para o seu cumprimento, assim como a sua transparência.
Segundo, o “regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações” trazido pela EC 109 permite que as contratações de obras, serviços e compras podem ser realizadas de forma simplificada, assim como abre a possibilidade de processos simplificados de contratação de pessoal. Os processos simplificados reforçam a responsabilidade dos Tribunais de Contas em acompanhar não apenas as ações dos entes públicos, mas também o correto e tempestivo registro contábil das informações decorrentes, de forma a espelhar integralmente os fatos.
Terceiro, a complexidade das novas regras não pode ser desconsiderada nesse momento. Considerando o volume de mudanças constitucionais e legais que o país tem acompanhado, os Tribunais de Contas tem um papel relevante na orientação, sobretudo aos municípios. Para que as regras sejam adotadas, todos devem efetivamente entender o que deve ser feito, e o que não pode ser feito. Por exemplo, alguns pontos da EC 109 podem gerar dúvidas e riscos de erros na aplicação, como pode ser o caso da permissão do uso do superávit financeiro dos fundos públicos para pagamento da dívida pública, ou até para livre utilização (art. 5º).
Quarto, os Tribunais de Contas devem ficar atentos à transparência plena das informações. Nesse momento de recursos escassos, e que requer decisões rápidas pelos governos, a transparência plena deve ser assegurada, não apenas das transações que decorrem da execução orçamentária, mas também relativas a outras informações, como estoques de medicamentos, benefícios fiscais (renúncias de receita), e decorrentes de outros arranjos como gastos terceirizados diversos, tais como aqueles realizados com parcerias com entidades do terceiro setor. Muitas vezes os portais dos governos não estão preparados para disponibilizar todas as informações, e muitos Tribunais de Contas têm desenvolvido portais de transparência com informações dos entes, o que parece ser uma ótima prática.
Quinto, os incentivos e benefícios fiscais dos quais decorram renúncias de receitas têm recebido atenção da legislação (como a LC 178/2021, EC 109/2021), requerendo sua diminuição em determinadas condições. Isso requer que as informações de benefícios sejam apurados, o que parece ser um desafio aos entes, dado que uma boa parte desses benefícios transitarem por fora do orçamento. Os Tribunais de Contas possuem papel relevante no monitoramento e na criação de incentivos para que as informações sejam apuradas pelos entes. Uma ressalva importante é a existência da Instrução de Procedimentos Contábeis (IPC) 16/2020 publicada em 2020, que apresenta formas de controle e de divulgação dessas informações em conjunto com o projeto da LDO pelos entes, que pode ser incentivado pelos Tribunais de Contas.
Ricardo Rocha de Azevedo
Professor – Faculdade de Ciências Contábeis (FACIC)
Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Consulte artigos sobre o tema:
DIEESE. Nota Técnica. Emenda Constitucional nº 109/2021: novo desmonte dos direitos sociais. In: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2021/notaTec257PEC186.pdf . Acessado em 15/06/21.
INSPER. Emenda Constitucional 109 (PEC Emergencial): a fragilidade e a incerteza fiscal permanecem. In: https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2021/03/PEC-Emergencial_Marcos-Mende_mar2021.pdf . Acessado em 15/06/21.
PONTES, Edilberto. Vale a pena desvincular receitas orçamentárias. In: https://irbcontas.org.br/artigo/vale-a-pena-desvincular-receitas-orcamentarias/ Acessado em 15/06/21.
Veja os eventos realizados pelas Escolas de Contas sobre o tema:
TCEPR – live EC 109/21: aspectos contábeis. https://irbcontas.org.br/eventos/emenda-constitucional-109-21-aspectos-contabeis/
TCEPR – live EC 109/21: aspectos jurídicos: https://www.youtube.com/watch?v=10hsPIMpAY0